segunda-feira, 29 de dezembro de 2008
Passos da Cruz
Venho de longe e trago no perfil,
Em forma nevoenta e afastada,
O perfil de outro ser que desagrada
Ao meu actual recorte humano e vil.
Outrora fui talvez, não Boabdil,
Mas o seu mero último olhar, da estrada
Dado ao deixado vulto de Granada,
Recorte frio sob o unido anil...
[Fernando Pessoa]
sexta-feira, 26 de dezembro de 2008
Evis Costello - «She»
Grandiosos
podem não ser só
os amores clandestinos
Mas é por serem
contrariados e reprimidos
que assumem a plenitude
domingo, 30 de novembro de 2008
Os Dias de sempre
evitando o intempestivo atraso
dos dias amanhecidos
e claros, que revelam
as imperfeições do corpo e dos sentidos
e desviemos o sortilégio amargo
de viver por nós
e de viver pelos outros
queiramos o quotidiano
simples e imediato
dos irresolutos avatares
domingo, 23 de novembro de 2008
"Quadras da minha solidão"
aquecer meu corpo outrora...
Como é breve o sol daqui!
E como é longa esta hora...
Donde estou vejo partir
quem parte certo e feliz.
Só eu fico. E sonho ir,
rumo ao sol do meu país...
Por isso as asas dormentes,
suspiram por outro céu.
Mas ai delas! tão doentes,
não podem voar mais eu...
que comigo, preso a mim,
tudo quanto sei de cor...
Chamem-lhe nomes sem fim,
por todos responde a dor.
Mas dor de quê? dor de quem,
se nada tenho a sofrer?...
Saudade?...Amor?...Sei lá bem!
É qualquer coisa a morrer...
E assim, no pulso dos dias,
sinto chegar outro Outono...
passam as horas esguias,
levando o meu abandono...
[Alda Lara]
sábado, 22 de novembro de 2008
Azagaia - «As Mentiras da Verdade»
Azagaia, o rapper moçambicano "maldito" actuou no fecho da campanha eleitoral de Deviz Simango, o candidato independente ao Município da Beira.
Contra os partidos predominantes, ganhou as eleições locais na 2.ª cidade do País; pode bem ser o um exemplo do que poderá vir a ser o futuro do sistema político em Moçambique, em que os eleitores já não se revêem em fórmulas gastas de propostas político-partidárias.
Um candidato com claro apoio na população, boicotado pelo governo central, insinuado de corrupto, feitiçeiro, criminoso, Simango já é chamado de «Obama do Chiveve».
Parabéns, Simango e Força para arrostar com uma bem pesada tarefa na luta por um Moçambique melhor e mais justo.
terça-feira, 11 de novembro de 2008
domingo, 19 de outubro de 2008
domingo, 28 de setembro de 2008
Fascínio suaíli
Elegância macua
sexta-feira, 26 de setembro de 2008
As coisas inevitáveis
sucedem
quanto mais se pensam evitar
como roldanas
que não travam
arrastando os graves
na imponderabilidade aparente
de uma meteórica subida
sem limite palpável
domingo, 21 de setembro de 2008
Concepções
[...]
É preciso que em África haja por cada preto um branco para se realizar esse sonho de muitos espíritos elevados do velho mundo; porque só então o elemento civilizador equilibrará com o selvagem e poderá vencê-lo.
Temos até um exemplo disto com os Bóeres do Transval, que, europeus de origem, em um século apenas perderam tudo que de civilização trouxeram da Europa, foram vencidos pelo elemento selvagem do meio em que viviam e hoje, se são europeus pela cor e pela religião de Cristo que professam, são bárbaros pelos costumes que tiraram do país.»
Serpa Pinto, Como eu atravessei a África.
terça-feira, 16 de setembro de 2008
sexta-feira, 12 de setembro de 2008
Mar de Cristo
Georges! anda ver o meu país de marinheiros,
O meu país das naus, de esquadras e de frotas!
Oh as lanchas dos poveiros
A saírem a barra, entre ondas de gaivotas!
Que estranho é!
Fincam o remo na água, até que o remo torça,
À espera da maré,
Que não tarda aí, avista-se lá fora!
E quando a onda vem, fincando-o a toda a força
Clamam todos à uma: “Agôra! agôra! agôra!”
E, a pouco e pouco, as lanchas vão saindo
(Às vezes, sabe Deus, para não mais entrar...)
Que vista admirável! Que lindo! Que lindo!
Içam a vela, quando já não têm mar:
Dá-lhes o vento e todas, à porfia
Lá vão soberbas, sob um céu sem manchas,
Rosário de velas, que o vento desfia,
A rezar, a rezar a Ladaínha das Lanchas:
Senhora Nagonia!
Olha acolá!
Que linda vai com seu erro de ortografia...
Quem me dera ir lá!
Senhora Daguarda!
(Ao leme vai o mestre Zé da Leonor)
Parece uma gaivota: aponta-lhe uma espingarda
O caçador!
Senhora d`ajuda!
Ora pro nobis!
Caluda!
Semos pobres!
Senhor dos ramos
Istrela do mar!
Cá bamos!
Parecem Nossa Senhora, a andar.
Senhora da Luz!
Parece o farol...
Maim de Jesus!
É tal qual ela, se lhe dá o sol!
Senhor dos Passos!
Sinhora da Ora!
Águias da voar, pelo mar dentro dos espaços
Parecem ermidas caiadas por fora...
Senhor dos Navegantes!
Senhor de Matusinhos!
Os mestres ainda são os mesmos dantes:
Lá vai o Bernardo da Silva do Mar,
A mailos quatro filhinhos,
Vascos da Gama que andam a ensaiar...
Senhora dos Aflitos!
Martir São Sebastião!
Ouvi os nossos gritos!
Deus nos leve pela mão!
Bamos em paz!
Oh lanchas Deus vos leve pela mão!
Ide em paz!
Ainda lá vejo o Zé da Clara, os Remelgados,
O Jeques, o Pardal, na Nam Te Perdes,
E das vagas, aos ritmos cadenciados,
As lanchas vão traçando, à flor das águas verdes,
“As armas e os varões assinalados...”
Lá sai a derradeira!
Ainda agarra as que vão na dianteira...
Como ela corre!Com que força o vento a impele:
Bamos com Deus!
Lanchas, ide com Deus! ide e voltai com Ele
Por esse mar de Cristo...Adeus! adeus! adeus!
[António Nobre]
domingo, 7 de setembro de 2008
Dhows
A Ilha, em dia encoberto
sábado, 30 de agosto de 2008
Babel
Porquê, então, o caos?
Babel coloniza-nos
pela intimidade dos povos,
sem precisão de salvo-conduto.
Falamos japonês nos Champs Élysées
Beckett é lido nas montanhas de Kandahar
comunica-se castelhano em Tiannamen
e o céu protege-nos em Tânger
é provável escutar suaíli no calçadão do Rio
ou rezar em yiddish no Kilimanjaro
decerto falaremos português no Ceilão.
O Mundo é já Babel
Porquê, então, o caos?
quarta-feira, 20 de agosto de 2008
Coração em África IV
de uma só vez (oh orgão feminino do homem)
de uma só vez para que possa pensar contigo em África
na esperança de que para o ano vem a monção torrencial
que alagará os campos ressequidos pela amargura da metralha
e adubados pela cal dos ossos de Taszlitzki
na esperança de que o Sol há-de prenhar as espigas de trigo
para os meninos viciados
e levará milho às cabanas destelhadas do último rincão da Terra
distribuirá o pão o vinho e o azeite pelos aliseos;
na esperança de que as entranhas hiantes de um menino antípoda
haja sempre uma túlipa de leite ou uma vaca de queijo que lhe mitigue a sede da existência. Deixa-me coração louco
deixa-me acreditar no grito de esperança lançado pela paleta viva de Rivera
e pelos oceanos de ciclones frescos das odes de Neruda;
deixa-me acreditar que do desespero másculo de Picasso sairão pombas
que como nuvens voarão os céus do mundo de coração em África.
[Francisco José Tenreiro]
Coração em África III
e a rouquidão sentimento das inarmonias de Armstrong.
De coração em África em todas as poesias gregárias ou escolares que zombam
e zumbem sob as folhas de couve da indiferença
mas que têm a beleza das rodas de criança com papagaios garridos
e jogos de galinha branca vai até França
que cantam as volutas dos seios e das coxas das negras e mulatas de olhos rubros
como carvões verdes acesos.
De coração em África trilho estas ruas nevoentas da cidade
de África no coração e um ritmo de be bop be nos lábios
enquanto à minha volta se sussurra olha o preto (que bom)
olha um negro (óptimo) olha um mulato (tanto faz) olha um moreno (ridículo)
e procuro no horizonte cerrado da beira-mar
cheiro de maresias distantes de areais distantes
com silhuetas de coqueiros conversando baixinho à brisa da tarde
De coração em África na mão deste Negro enrodilhado e sujo de beira-cais
vendendo cautelas com a incisão do caminho da cubata
perdida na carapinha alvinitente;
de coração em África com as mãos e os pés trambolhos
disformes e deformados como os quadros de Portinari
dos estivadores do mar
e dos meninos ranhosos viciados pelas olheiras fundas das fomes de Pomar
vou cogitando na pretidão do mundo que ultrapassa da própria cor da pele
dos homens brancos amarelos negros ou às riscas
e o coração entristece à beira-mar da Europa
da Europa por mim trilhada de coração em África;
e chora fino na arritmia de um relógio cuja corda vai estalar
soluça a indignação que fez os homens escravos de homens
mulheres escravas de homens crianças escravas de homens
negros escravos dos homens
amarelos e brancos e brancos e amarelos e negros escravos sempre dos homens
e também aqueles de que ninguém fala e eu Negro não esqueço
como os pueblos e os xavantes os esquimós os aïnos eu sei lá
que são tantos e todos escravos entre si.
[Francisco José Tenreiro]
Coração em África II
Mac Gee cidadão da América e da democracia
Mac Gee cidadão Negro e da negritude
Mac Gee cidadão Negro da América e do Mundo Negro
Mac Gee fulminado pelo coração endurecido feito cadeira eléctrica
(do cadáver queimado de Mac Gee do seu coração em África e sempre vivo
floriram flores vermelhas flores vermelhas flores vermelhas
e também azúis e também verdes e também amarelas
na gama polícroma da verdade do Negro
da inocência de Mac Gee) -;
três linhas no jornal como um falso cartão de pêsames.
Caminhos trilhados na Europa
de coração em África.
De coração em África com o grito seiva bruta dos poemas de Guillén
de coração em África com a impetuosidade viril de I too am América
de coração em África com as árvores renascidas em todas estações
nos belos poemas de Diop
de coração em África nos rios antigos que o Negro conheceu
e no mistério do Chaka-Senghor
de coração em África contigo amigo Joaquim quando em versos incendiários
cantaste a África distante do Congo da minha saudade do
Congo de coração em África.
De coração em África ao meio dia do dia de coração em África
com o Sol sentado nas delícias do zénite
reduzindo a pontos as sombra dos Negros
amodorrando no próprio calor da reverberação
os mosquitos
da nocturna picadela.
[Francisco José Tenreiro]
Coração em África I
de coração em África.
Saudades longas de palmeiras vermelhas verdes amarelas
tons fortes da paleta cubista
que o Sol sensual pintou na paisagem;
saudade sentida de coração em África
ao atravessar estes campos do trigo sem bocas
das ruas sem alegria com casas caiadas
pela metralha míope da Europa e da América
da Europa trilhada por mim Negro de coração em África.
De coração em África na simples leitura dominical
dos periódicos cantando na voz ainda escaldante da tinta
e com as dedadas de miséria dos ardinas das cities boulevards e baixas da Europa
trilhada por mim Negro e por ti ardina
cantando dizia eu em sua voz de letras as melancolias
do orçamento que não equilibra
do Benfica venceu o Sporting ou não
ou antes ou talvez seja que desta vez vai haver guerra
para que nasçam flores roxas de paz
com fitas de veludo e caixões de pinho;
oh as longas páginas do jornal do mundo
são folhas enegrecidas de macabro blue
com mourarias de facas e guernicas de toureiros.
[Francisco José Tenreiro]
terça-feira, 29 de julho de 2008
Ilha do Moçambique: memórias do "colonial-fecalismo"
Abibo, é esse o seu nome, chegara ontem do continente, mais precisamente de uma das praias que se avistam da costa ocidental da Ilha, e desconhecia por completo as normas desta municipalidade. Fôra apanhado a defecar na praia como é uso na sua terra, até por aí não haver pedagogia em contrário, latrinas ou bacios. E, até com certa lógica, não acham os nativos melhor sítio para fazerem as suas necessidades, posto que a água do mar, com que se lavam depois do serviço, se encarrega em seguida de levar a imundice para longe. O hábito só pode, porém, ser considerado menos maus em locais onde não haja senhoras, o que não é aqui o nosso caso.
E foi assim que um sargento do exército foi alertado para o sucesso ao ouvir os gritos de Madame Benoit, uma viúva francesa que aqui permaneceu após a morte do marido, que jazia desmaiada no pavimento, tomada de indignação exacerbada pela visão do traseiro do mudo Abibo.
O mudo vai ser amanhã presente ao Juiz, embora se adivinhe que o esperam já uns dias de cadeia, por não ter com que pagar a elevada coima correspondente ao crime em causa.
Não se sabe, aliás, se será acusado de despejos ilícitos ou de atentado ao pudor.»
Mariano Gracias, Ilha de Moçambique, 4 de Agosto de 1899 (de Muhípiti, de Miguel Martins, Erasmus).
sábado, 19 de julho de 2008
Ilha de Moçambique
dessa tranquilidade crespuscular
sentado na balaustrada
da conta-costa
de Muhipíti
de onde se alcança
a Ilha de Goa e os mangais da Cabaceira
Ouve-se o coro dos pescadores
que regressam nos dhows
trazendo a bordo
toda a confluência memorial
das raças, credos e saberes
dos homens
que lá se cruzaram
e ficar,
a saborear o vento
na frescura
das casuarinas
depois das luzes se acenderem
no Mossuril
terça-feira, 8 de julho de 2008
A Ilha, a preto e a cor
Inaugura amanhã, na Fábrica de Braço de Prata (Olivais), em Lisboa.
Do ma-schamba, com a devida vénia, rentransmite-se a informação.
A visitar.
sábado, 28 de junho de 2008
quinta-feira, 26 de junho de 2008
sábado, 21 de junho de 2008
segunda-feira, 16 de junho de 2008
sexta-feira, 6 de junho de 2008
quarta-feira, 4 de junho de 2008
quarta-feira, 28 de maio de 2008
quinta-feira, 8 de maio de 2008
Canto do nosso amor sem fronteira
E moçambicanas mãos nossas
dão-se
e olhamos a paisagem e sorrimos.
Não sabemos de áreas de esterlino
de câmbios
vistos de fronteira
zonas de marco e dólar
portagem do Limpopo
canais de Suez e do Panamá.
Amamo-nos hoje numa praia das Honduras
estamos amanhã sob o céu azul da Birmânia
e na madrugada do dia dos teus anos
despertamos nos braços um do outro
baloiçando na rede da nossa casa na Nicarágua.
Ou
com os olhos incendiados
nos poentes do Mediterrâneo
recordamos as noites mornas da praia da Polana
e a beijos sorvo a tua boca no Senegal
e depois tingimos mutuamente
os lábios com as negras amoras de Jerusalém
ambos entristecidos ao galope dos pés humanos
sem ferraduras mas puxando riquexós
só de ver puxar nós também puxamos
nas transpiradas ruelas antigas
da ilha de Moçambique.
Oh, beijemo-nos, amor
teus cabelos sussurrantes
na esplêndida nudez morena do meu peito
que são nossos os céus sulcados de xiricos e aviões
e nossos irmãos os povos de outros paralelos
até mesmo os pobres «boers» solitários
na cruzada de amor em que me abraças numa rua
principal da cidade de Pretória descontraidamente
como se fosse no bairro de Xipamanine.
Mas bem fundo das almas
e dos corpos tatuados de esperança
o clítoris das montanhas nos sexos das nuvens
pátria do nosso desespero mais desesperado
pátria dos pés descalços na brancura do algodão
pátria de beijos e promessas de mais beijos
é o nosso genuíno grito mais gritado
a levantar no cosmos a beleza do nome
não renegável de Moçambique.
[José Craveirinha]
domingo, 20 de abril de 2008
quarta-feira, 9 de abril de 2008
Do Mar o incriado nasce
mas porque a nomeias coração do vento
capaz deste segredo vontade grega
de amar o que a alma intui e cria.
E de tal modo ela seria e é desejo
que tudo esqueço para vê-la nua
devir do sentido no seu sentido vago
louco amor agreste que a utopia apela.
Na ausência de limites para o que sonhas
vacilante avanço ágil mas sem asas
sem medida luz do fragmentado verbo.
Rio e choro sendo a máscara e o rosto
Nomeado língua capaz do que não sei
Suspenso o tempo do mar o incriado nasce.
Virgílio de Lemos
[Ilha de Moçambique, 1952]
terça-feira, 8 de abril de 2008
Perguntas à Língua Portuguesa - Mia Couto
A língua que eu quero é essa que perde função e se torna carícia. O que me apronta é o simples gosto da palavra, o mesmo que a asa sente aquando o voo. Meu desejo é desalisar a linguagem, colocando nela as quantas dimensões da Vida. E quantas são? Se a Vida tem é idimensões?
Assim, embarco nesse gozo de ver como escrita e o mundo mutuamente se desobedecem. Meu anjo-da-guarda, felizmente, nunca me guardou.
Uns nos acalentam: que nós estamos a sustentar maiores territórios da lusofonia. Nós estamos simplesmente ocupados a sermos. Outros nos acusam: nós estamos a desgastar a língua. Nos falta domínio, carecemos de técnica. Ora qual é a nossa elegância? Nenhuma, excepto a de irmos ajeitando o pé a um novo chão. Ou estaremos convidando o chão ao molde do pé? Questões que dariam para muita conferência, papelosas comunicações. Mas nós, aqui na mais meridional esquina do Sul, estamos exercendo é a ciência de sobreviver. Nós estamos deitando molho sobre pouca farinha a ver se o milagre dos pães se repete na periferia do mundo, neste sulbúrbio.
No enquanto, defendemos o direito de não saber, o gosto de saborear ignorâncias. Entretanto, vamos criando uma língua apta para o futuro, veloz como a palmeira, que dança todas as brisas sem deslocar seu chão. Língua artesanal, plástica, fugidia a gramáticas.
Esta obra de reinvenção não é operação exclusiva dos escritores e linguistas. Recriamos a língua na medida em que somos capazes de produzir um pensamento novo, um pensamento nosso. O idioma, afinal, o que é senão o ovo das galinhas de ouro?
Estamos, sim, amando o indomesticável, aderindo ao invisível, procurando os outros tempos deste tempo. Precisamos, sim, de senso incomum. Pois, das leis da língua, alguém sabe as certezas delas?
Ponho as minhas irreticências. Veja-se, num sumário exemplo, perguntas que se podem colocar à língua:
· Se pode dizer de um careca que tenha couro cabeludo?
· No caso de alguém dormir com homem de raça branca é então que se aplica a expressão: passar a noite em branco?
· A diferença entre um ás no volante ou um asno volante é apenas de ordem fonética?
· O mato desconhecido é que é o anonimato?
· O pequeno viaduto é um abreviaduto?
· Como é que o mecânico faz amor? Mecanicamente.
· Quem vive numa encruzilhada é um encruzilhéu?
· Se diz do brado de bicho que não dispõe de vértebras: o invertebrado?
· Tristeza do boi vem de ele não se lembrar que bicho foi na última reencarnação. Pois se ele, em anterior vida, beneficiou de chifre o que está ocorrendo não é uma reencornação?
· O elefante que nunca viu mar, sempre vivendo no rio: devia ter marfim ou riofim?
· Onde se esgotou a água se deve dizer: "aquabou"?
· Não tendo sucedido em Maio mas em Março o que ele teve foi um desmaio ou um desmarço?
· Quando a paisagem é de admirar constrói-se um admiradouro?
· Mulher desdentada pode usar fio dental?
· A cascavel a quem saiu a casca fica só uma vel?
· As reservas de dinheiro são sempre finas. Será daí que vem o nome: "finanças"?
· Um tufão pequeno: um tufinho?
· O cavalo duplamente linchado é aquele que relincha?
· Em águas doces alguém se pode salpicar?
· Adulto pratica adultério. E um menor: será que pratica minoritério?
· Um viciado no jogo de bilhar pode contrair bilharziose?
· Um gordo, tipo barril, é um barrilgudo?
· Borboleta que insiste em ser ninfa: é ela a tal ninfomaníaca?
Brincadeiras, brincriações. E é coisa que não se termina. Lembro a camponesa da Zambézia. Eu falo português corta-mato, dizia. Sim, isso que ela fazia é, afinal, trabalho de todos nós. Colocámos essoutro português – o nosso português – na travessia dos matos, fizemos com que ele se descalçasse pelos atalhos da savana.
Nesse caminho lhe fomos somando colorações. Devolvemos cores que dela haviam sido desbotadas – o racionalismo trabalha que nem lixívia. Urge ainda adicionar-lhe músicas e enfeites, somar-lhe o volume da superstição e a graça da dança. É urgente recuperar brilhos antigos. Devolver a estrela ao planeta dormente.
domingo, 6 de abril de 2008
terça-feira, 1 de abril de 2008
Whampula
não de ti,
mas dos cabeços pétreos,
sentinelas imemoriais
que te rodeiam
Tinha-me esquecido
não das ruas ortogonais
que delimitam os passos
regulares e despreocupados
das gentes
de todas as raças
Esqueci-me, sim,
das imensidões brancas
do algodão em terra de negros,
e dos jocosos
gala-galas imponentes
que se fartavam de
arremeter escarninhos olhares
Tinha-me esquecido
que, afinal,
havia aquíferos
onde antes campeava a malária
e os beligerantes se saudavam
como irmãos
antes da batalha
Mas não esqueci,
não pude esquecer,
o riso branco das crianças
as mãos calosas do Ismahíl
o peito magro do Jumah
a ambição do Eugénio
e o chikwembo do Pastola
Guardo, porém,
todos segredos de uma juventude
precocemente abreviada
e confio,
às escondidas,
na força dos embondeiros.
sexta-feira, 28 de março de 2008
quarta-feira, 26 de março de 2008
Cavaco Silva na Ilha de Moçambique
-I+958.jpg)
segunda-feira, 24 de março de 2008
Fecundo o húmus
a veiga do Lima
ou as margens do Zambeze
e Zanzibar ao largo
num replandescente
ocaso no negrume
é eclusa a fechar o barco
há um crescente iluminando
a noite da Índia
e a tracção humana
do riquexó
dizer amado
solo sagrado
depois de transbordar
fecundo o húmus
segunda-feira, 17 de março de 2008
Nau perdida
aportou essa nau
ao largo da fortaleza
a sua equipagem dessedentava-se
no campo de S. Gabriel
à sombra rala das casuarinas
e gozava com as pretas
durante a estada
deixando passar a monção
embebedando-se com otekha
houve nessas paragens
heróis com escorbuto
e santos vivos ungindo
os moribundos
no adro da capela do baluarte
e no conto da companhia das Índias
estão ainda assentes os proveitos e as voltas
dessa lenta nau perdida
num tempo de presságio
apagado
de vez
sexta-feira, 14 de março de 2008
"Ilha de Moçambique"
Feita de sol e de prata
Marfim talhado em relíquias
Cobre batido do vento
Num moinho de saudades.
Fortaleza escancarada
A memórias esquecidas...
Senhora do Baluarte velando
As brancas velas do Canal.
Sermões de S. Francisco Xavier
Guardados nas rochas de coral.
Riquexós vagueando ao sol
Brancas praias sonolentas
Enfeitadas de saris e cofiós
Brancos, pretos, encarnados
E rostos cor da verdade
De viver num monumento
De prata, de oiro e de cobre
Cobre batido do vento...
Pórtico dos sonhos, momento
de índias descobertas e vencidas
Monumento, monumento,
De memórias esquecidas...
Além-portas de marfim
Paredes meias com a História
Dentro da fama e memória
Para que nela sempre fique
A Ilha de Moçambique.
[Neves e Sousa]
terça-feira, 11 de março de 2008
Lágrimas do Índico
domingo, 9 de março de 2008
Tempestade na Ilha
-I+1041.jpg)
quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008
A poesia e a Ilha de Moçambique
É, como confessadamente se disse já, a «fraqueza» sentida deste incipiente aglutinador (o que aglutina- a-dor?) de palavras. E a assunção passional de um paradigma telúrico e existencial que alguns compreenderão. Porventura um devaneio pseudo-intelectual (ou pequeno burguês ?) para redenção de muitas mágoas e vivências, talvez não experimentadas ao limite ou no tempo certo.
Fez também um oportuno reparo para correcção do endereço actual do seu blog na lista de links . «Ordem» já cumprida, JPT.
A desculpa aos africanos
Parece que não. Depois de o Papa ter pedido desculpas pela inquisição, depois de a Alemanha ter pedido desculpas pelo holocausto, julgava que estava tudo perdoado.
O arrependimento e o pedido de perdão, para ser genuíno, é o dos próprios ofensores, e não o "perdão" de terceiros, por muito pios e politicamente correctos que o sejam.
É uma atitude vazia, e, pior ainda, quando não se traduz em factos concludentes.
A escravatura e o colonialismo merecem ser compreendidos, debatidos, exorcizados, se necessário. Uma catarse é sempre positiva.
Mas este "perdão" pode ser a via mais fácil para a inconsequência.
quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008
Pedir desculpa aos africanos
Ver no chuinga.
Como as opiniões já se dividem, saudavelmente, prometo pensar no assunto.
Eduardo White - Ilha de Moçambique
quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008
A manutenção dos edifícios
na Ilha
pois neles recomeça
a gesta de todo o peso
da história
o cheiro dos madeiramentos
carcomidos
súbito o salitre
e a cal que se desprende
das paredes largas
e dos portais
e pousa triturado
no rosto-m´siro
das mulheres
É difícil conservar os edifícios
na Ilha
mais do que chamar
à razão
os homens
desprevenidos
sábado, 9 de fevereiro de 2008
Quando soubesses
o que significa
«Comprámos muita fome
e desesperámos com ela
porque o milho
se mergulhou»
então poderias
exibir a tua
ignara arrogância
com aqueles
que se acham baços,
apagados e reféns,
como, num dia nublado,
as estrelas
sábado, 2 de fevereiro de 2008
Ser sempre cidadão
desde o raiar da madrugada
até altas horas da noite
sempre
indignar-se com a auto-proclamação
representativa
desses mercenários
do virtuosismo postiço
das modas fracturantes
ser cidadão
sempre
quinta-feira, 31 de janeiro de 2008
Manual das mãos
-I+843.jpg)
Não tenho dinheiro. Gastei-o a exilar-me em mim mesmo. No álcool, algumas vezes. A pagar rodadas dele aos amigos para não ficar sozinho. Tenho um pavor à solidão. É-me corrosiva e não sei viver com ela.
Penso, como consequência, em partir. Para onde? Não sei, se tivesse dinheiro era para uma ilha. A minha ilha. Moçambique. É bela. Antiga. Magistral.
Vejo-a:
Um pássaro revolve as asas por dentro do verde esbatido do mar. Traça a casa líquida que às estrelas, certamente, o seu piar vai dar. A história é-lhe longe, são formas entrecortadas, sobre a espuma amarelecida, dos navios cargueiros que beijam lentos o horizonte e movem silenciosos outras cargas.
A ilha suspende-se entre o vento e um negro reluzente cruza a praia com os olhos lavrando as areias. Não sei se reza, mas que pensa é mais que evidente. Testemunham os brancos cabelos e as mazelas no caqui dos desbotados calções. Cheira a marisco a brisa que inalam as narinas dentro desta paisagem e a cânfora, alguma, das memórias que ela desenha.
As redes que sobre o chão encontro estendidas, são cartas oceânicas que escreve o fundo do mar. Do texto salta a prata dos peixes, o verde amaciado das algas e uma estrela imóvel que explode, por dentro, a terra toda a girar. Claro que a areia as grava. Nessa forma de escrita mais milenar que a geringonça mágica de Gutemberg. Porque Deus descansa aqui, ao cair da noite. Silenciosamente medita por entre as lágrimas das tartarugas que junto a ele vêm desovar, ou de um negro macúa, estirado sobre o desgosto, a chorar um amor que, por teimosia, não quer morrer.
Vão longe, a navegar, os versos da miséria que do Luís de Camões a história quis esconder. Os ducados que nunca teve, nem para voltar nem para morrer, servem outros reinados e engordam a mesa dos que ainda julgam que poeta bom só miserável pode escrever. Lêem e estudam o que não dizem os poemas, sábios doutores esses universos etários, e nem com verdade podem entender, entretanto, o que eles explodem e doem e fazem crescer no coração esquecido dos seus autores.
Por isso a Ilha é calma. Tonta de tanta quietude e, talvez, será o que querem dizer as faces delicadas das suas negras, as mãos talhadas dos seus ourives.
Assim, o meu velho Camões, macúa zarolho só por ter visto sempre demais, terá, talvez, ali, amado o seu negro, seus humanos adamastores e com eles provado essa fatalidade incontornável de ser poeta sem ilha na ilha extensa dos que nela, até hoje, não o sabem ler.
Mas era para lá que eu queria partir.
Eduardo White
[Manual das Mãos - Excerto]
terça-feira, 29 de janeiro de 2008
Muipíti
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Mas retomo devagarinho as tuas ruas vagarosas,
[Rui Knopfli]
Muhipiti
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sábado, 26 de janeiro de 2008
quarta-feira, 23 de janeiro de 2008
Toda a extensão da catástrofe
nunca víamos
de dia
a Lua
Nesse tempo
omitiam-nos a temibilidade
da luz
de toda a luz
mais do que o temor das trevas
No passado não nos disseram
toda a extensão
da catástrofe
escondida
Não avistávamos,
nesse antanho
o horizonte
para lá da copa desse carvalho
que abraça o mundo
invertido dos embondeiros.
segunda-feira, 14 de janeiro de 2008
Igual-desigual
todas as histórias em quadradinho são iguais.
Todos os filmes norte-americanos são iguais.
Todos os filmes de todos os países são iguais.
Todos os best-sellers são iguais.
Todos os campeonatos nacionais e internacionais de futebol
são iguais.
Todos os partidos políticos
são iguais.
Todas as mulheres que andam na moda
são iguais.
Todas as experiências de sexo
são iguais.
Todos os sonetos, gazéis, virelais, sextinas
e rondós são iguais
e todos, todos
os poemas em verso livre são enfadonhamente iguais.
Todas as guerras do mundo são iguais.
Todas as fomes são iguais.
Todos os amores, iguais iguais iguais.
Iguais todos os rompimentos.
A morte é igualíssima.
Todas as criações da natureza são iguais.
Todas as ações, cruéis, piedosas ou indiferentes,
são iguais.
Contudo, o homem não é igual a nenhum outro
homem, bicho ou coisa.
Ninguém é igual a ninguém.
Todo ser humano é um estranho
ímpar.
Carlos Drummond de Andrade.
sábado, 12 de janeiro de 2008
Ilha de Moçambique
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segunda-feira, 7 de janeiro de 2008
São nossas as mãos
que tecem o futuro
e produzem rígidas
cofragens de gente
são nossas
também
as palavras desonestas
e prenhes de certeza
que apoucam
o génio dos homens