quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Negotia gerimus bene

Para começar: o seu ar triunfal muitas vezes escondia uma paradoxal melancolia. Estava ali com os outros, por vezes horas, em convívio cavalar, as boas maneiras eram suspensas. Os discursos glosavam, já se vê, viagens, gajas, vinhos e carros. Tinham-se deixado dessa veleidade que é a leitura. Já bastava o terem «queimado tanto as pestanas» na Universidade, uma longínqua e indispensável etapa para se catapultarem para o estatuto que hoje ocupam: ceo, administrador-delegado, gestor de topo, senhas de presença, prémios de reconhecimento, carro, cartão e telemóvel. Secretária e três viagens por ano. Férias pagas no estrangeiro.
Sim, as medidas aprovadas, foram tomadas com alguma mágoa; mas eram inevitáveis, pelo menos no sentido em que acalmavam os accionistas, que achavam que, assim, era possível reestruturar a empresa e abrir novas oportunidades de negócio. Mal eles sabiam que, afinal, a contabilidade fora martelada.
E, daí a dias, entraria entrada em Juízo um requerimento de insolvência.

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Jorge de Sena e a Ilha de Moçambique

CAMÕES NA ILHA DE MOÇAMBIQUE


É pobre e já foi rica.
Era mais pobre
quando Camões aqui passou primeiro,
cheia de livros a cabeça e lendas
e muita estúrdia de Lisboa reles.
Quando passados nele os Oriente
se o amargor dos vis sempre tão ricos,
aqui ficou, isto crescera, mas
a fortaleza ainda estava em obras,
as casas eram poucas, e o terreno
passeio descampado ao vento e ao sol
desta alavanca mínima, em coral,
de onde saltavam para Goa as naus,
que dela vinham cheias de pecados
e de bagagens ricas e pimentas podres.
Como nau nos baixios que aos Sepúlvedas
deram no amor corte primeiro à vida,
aqui ficou sem nada senão versos.
Mas antes dele, como depois dele,
aqui passaram todos: almirantes,
ladrões e vice-reis, poetas e cobardes,
os santos e os heróis, mais a canalha
sem nome e sem memória, que serviu
de lastro, marujagem, e de carne
para os canhões e os peixes, como os outros.
Tudo passou aqui ─ Almeidas e Gonzagas,
Bocages e Albuquerques, desde o Gama.
Naqueles tempos se fazia o espanto
desta pequena aldeia citadina
de brancos, negros, indianos e cristãos,
e muçulmanos, brâmanes, e ateus.
Europa e África, o Brasil e as Índias,
cruzou-se tudo aqui neste calor tão branco
como do forte a cal no pátio, e tão cruzado
como a elegância das nervuras simples
da capela pequena do baluarte.
Jazem aqui em lápides perdidas
os nomes todos dessa gente que,
como hoje os negros, se chegava às rochas,
baixava as calças e largava ao mar
a mal-cheirosa escória de estar vivo.
Não é de bronze, louros na cabeça,
nem no escrever parnasos, que te vejo aqui.
Mas num recanto em cócoras marinhas,
soltando às ninfas que lambiam rochas
o quanto a fome e a glória da epopeia
em ti se digeriam. Pendendo para as pedras
teu membro se lembrava e estremecia
de recordar na brisa as cróias mais as damas,
e versos de soneto perpassavam
junto de um cheiro a merda lá na sombra,
de onde n’alma fervia quanto nem pensavas.
Depois, aliviado, tu subias
aos baluartes e fitando as águas
sonhavas de outra Ilha, a Ilha única,
enquanto a mão se te pousava lusa,
em franca distracção, no que te era a pátria
por ser a ponta da semente dela.
E de zarolho não podias ver
distâncias separadas: tudo te era uma
e nada mais: o Paraíso e as Ilhas,
heróis, mulheres, o amor que mais se inventa,
e uma grandeza que não há em nada.
Pousavas n’água o olhar e te sorrias
─ mas não amargamente, só de alívio,
como se te limparas de miséria,
e de desgraça e de injustiça e dor
de ver que eram tão poucos os melhores,
enquanto a caca ia-se na brisa esbelta,
igual ao que se esquece e se lançou de nós.


[Jorge de Sena] Julho 72, in «Camões Dirige-se aos seus Contemporâneos», 1973