terça-feira, 20 de outubro de 2020

 Posteridade


Um dia eu, que passei metade
da vida voando como passageiro,
tomarei lugar na carlinga
de um monomotor ligeiro
e subirei alto, bem alto,
até desaparecer para além
da última nuvem. Os jornais dirão:
Cansado da terra poeta
fugiu para o céu. E não
voltarei de facto. Serei lembrado
instantes por minha família,
meus amigos, alguma mulher
que amei verdadeiramente
e meus trinta leitores. Então
meu nome começará aparecendo
nas selectas e, para tédio
de mestres e meninos, far-se-ão
edições escolares de meus livros.
Nessa altura estarei esquecido.


Rui Knopfly

sexta-feira, 18 de setembro de 2020

Não acreditar em cidades imaginadas

Não confies
quando te seduzirem as cidades-modelo
ou "urbes inteligentes"

Faz por viver numa cidade
onde trabalhem ardinas, peixeiras, alfaiates e ourives
Onde se ouçam os melros e os pintassilgos
e haja poeira, gatos
e tempo das vizinhas
E sinais sem marcar distância
com inscrições a cal
Onde se sinta o silêncio

Pode ser uma cidade com mar
onde os marinheiros se perdem 
nas ruelas das encostas
e nas tabernas até de madrugada
Onde haja carroças em volteio 
à frente dos chafarizes
Onde a imperfeição não signifique fealdade

Uma cidade autêntica
feita de pedra, telha, hortas e madeira
Assegura-te que a cidade seja incompleta,
mas onde não faltem crianças, prostitutas e ladrões.