sábado, 3 de dezembro de 2011

Série Askari (22)

Askaris do Império colonial alemão

sábado, 26 de novembro de 2011

Breve memória familiar e comercial da África Oriental portuguesa (XXIII) – O caso do bilhete premiado

A sociedade Domingos dos Reis & Sobrinho, Ld.ª era representante da Casa da Sorte, na cidade e região de Nampula. Nessa qualidade, inicialmente, a Casa Reis (re)vendia lotarias a outros comerciantes, que tinham negócios na cidade ou em cantinas no mato. Só mais tarde foi inaugurado o jogo «Totobola». Inauguração do jogo Totobola na Casa Reis, em Nampula

Numa operação que hoje se designaria de “marketing vitrinista” (de elevado recorte), José dos Reis Bravo colocou, certa ocasião, na montra, diversos molhos de papel da mesma medida de notas de 1.000$00, com uma nota real por cima, dando a ilusão de se tratar de montes de notas perfazendo 1.000.000$oo (cerca de € 5.000,00). Composição vitrinista desaconselhada pela PSP de Nampula, devido às tentações que podia incitar

Durou pouco a veleidade “vitrinista”, sendo prontamente intimado pelo comandante da PSP local a retirar tais artigos, dado o potencial de atracção que representava para “interessados” no “prémio” exposto, atendendo a que naquele período se verificava uma incidência inusitada de crimes de furto.
Havia, naturalmente, diversos cauteleiros de etnia macua, que procediam à revenda da lotaria à consignação, tendo um período limite para a sua devolução, podendo destacar-se, pela sua notável eficiência e espírito de entrega ao trabalho, os cauteleiros Peliquito “Chico” Mussa, “Piconero” e Pastola Sitora. Dos dois primeiros há que registar o seu empenho e a longa permanência ao serviço da Casa Reis. O último tinha uma deformidade congénita na coluna, o que o tornava especialmente procurado, dada a superstição de alguns jogadores, segundo os quais «dava sorte» roçar com os bilhetes de lotaria na corcunda.Aspecto do exterior da Casa Reis, no dia que foi pago o prémio



Nos diversos anos em que se vendeu lotaria, muitos bilhetes foram premiados, a cidadãos de todas as condições e extractos sociais. Por se tratar de prémios de valor relativamente baixo, nunca houve qualquer incidente no tocante ao pagamento e recebimento dos mesmos, por parte dos titulares dos mesmos. Contudo, quando se tratava de valores de prémios considerados «muito elevado», as autoridades administrativas pretendiam sempre restringir aos titulares – numa atitude “colonial-paternalista” –, tratando-se de cidadãos de etnia macua, o direito a receber o valor integral do prémio, alegando que parte do mesmo ficaria sob a gestão do administrador do concelho, que o aplicaria em fundos ou depósitos onde rendesse juros que, oportunamente, reverteriam a seu favor.



Em certa ocasião, porém, saiu o segundo prémio da lotaria nacional numa cautela de um bilhete a um cidadão nampulense de etnia macua. Por se tratar de um valor relativamente elevado, um outro residente pretendia adquirir o bilhete de lotaria por valor superior, a fim de o remeter para Portugal, como se se tratasse de dinheiro (escudos) da metrópole, dadas as restrições de transferências de capitais da província. Contactou José dos Reis Bravo, propondo-se adquirir a referida cautela, dizendo-lhe que tentasse convencer o premiado de tal intenção, pois lhe seria mais vantajoso receber uma quantia algo superior à do prémio (em escudos moçambicanos). José dos Reis Bravo ficou apreensivo com tal proposta, além de poder incorrer nalgum tipo de responsabilidade cambial, pelo que a declinou. José dos Reis Bravo, acompanhado de Juma Martade, entregando o valor do prémio ao premiado , ladeado pelo cauteleiro «Pastola Sitora»


Pelo contrário, optou por reconhecer o incondicional direito de uma pessoa a receber, em plena autonomia da vontade (e na plenitude das suas faculdades), o valor de um prémio de lotaria, combinando com o cidadão ganhador a data do recebimento do valor correspondente, para o que levantou oportunamente o montante no Banco. Aquele compareceu na data combinada para receber o seu valor, a contado, em cima do balcão da Casa Reis, entregue por José Bravo e por Juma Martade. O evento é testemunhado por muitos populares, tendo sido notícia nos jornais e na Rádio.
O premiado investiu o valor do prémio num camião, que foi de imediato encomendar na Pendray Sousa, e não consta que tivesse aplicado mal o remanescente.

sábado, 19 de novembro de 2011

Breve memória familiar e comercial da África Oriental portuguesa (XXII) – Um projecto do Arquitecto José Forjaz e de Mestre Chale

A certo momento, constata-se que o estabelecimento Casa Reis (da sociedade Domingos dos Reis & Sobrinho, Ld.ª) se tornara ultrapassado e pouco funcional. Surgiu a ideia de o remodelar, para acompanhar, aliás, a transformação arquitectónica que a cidade conhecia na época, nomeadamente a nível comercial, com o aparecimento de estabelecimentos comerciais, hoteleiros e de restauração verdadeiramente «modernos» e com projectos de arquitectura de grande qualidade e funcionalidade.
Sucedeu, nesse contexto, a feliz circunstância de José dos Reis Bravo travar conhecimento com o arquitecto José Forjaz, então a prestar serviço militar em Nampula, e que se dedicava a pequenos trabalhos de arquitectura quase pro bono, exercitando um pouco do que viria a ser o seu «estilo». Expõe-lhe o seu interesse em remodelar o estabelecimento e indaga da disponibilidade daquele para tal tarefa. José Forjaz aceita o desafio. A fachada da Casa Reis, após a remodelação pelo arquitecto José Forjaz

Foi nessa ocasião que o estabelecimento se expande e ocupa todo o rés-do-chão do edifício que já ocupava no lado direito, implicando a transferência da Ourivesaria Tito Martins para a esquina da Avenida Presidente Carmona com a Avenida da Catedral (actuais Paulo S. Kankhomba e Eduardo Mondlane). Aspecto parcial do interior da loja

Nessa tarefa, conta-se com a insubstituível colaboração de Mestre Chale, sobrinho dilecto de Juma Martade, o fiel empregado da firma Domingos dos Reis & Sobrinho, Ld.ª

Aspecto parcial do interior da loja, após a remodelação



Chale demonstrara ser já um carpinteiro e marceneiro de excepção, oficial inteligente, eficiente, esclarecido, meticuloso, reservado e óptimo executante. Chale e José Forjaz entenderam-se na perfeição, referindo muitas vezes José Forjaz que não era preciso acabar de dizer o que pensava fazer, porque o oficial intuía facilmente o alcance do que ele pretendia e avaliava logo da possibilidade de executar a ideia em função dos meios disponíveis. Os "desenhos" do projecto eram esboços feitos a lápis de carpinteiro na parede em bruto (antes dos acabamentos de pintura). E assim se foram desenrolando os trabalhos de execução da obra, que demandou essencialmente muitos acabamentos de carpintaria, com estantes e tectos falsos, sendo projectados os balcões, a divisão dos espaços e o aproveitamento do pé-direito com tectos falsos (que serviriam de armazém).


Aspecto parcial do interior da loja, após remodelação

O arquitecto José Forjaz dirigia e visitava a obra pelo final da tarde e Chale era o encarregado e executante dos trabalhos mais exigentes. Nunca foi necessário mandar refazer um trabalho executado por Chale.


Aspecto parcial do interior da loja


O resultado foi um estabelecimento com decoração de interior de notável qualidade e funcionalidade, adaptado aos negócios, ao clima e à tradição da firma (o que se pensa ser visível nas imagens que ilustram este texto), onde José Forjaz insistiu em manter a velha, mas operacional, máquina registadora, que foi sempre referência da loja, fazendo a ponte entre o passado e a modernidade.

Aspecto parcial do interior da loja, onde é visível a velha máquina registadora National



O projecto simbolizou para a empresa, um ponto de cruzamento, por um lado, entre a tradição colonial e a modernidade tropical, e, por outro, entre o talento artístico do arquitecto português e o engenho do artífice africano.

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Breve memória familiar e comercial da África Oriental portuguesa (XXI) – Nampula, uma urbe com qualidade

Nampula desenvolvia-se rápida, mas harmoniosamente. A cidade, à imagem de outras dos territórios coloniais, obedecia a planos de expansão e desenvolvimento racionais, inspirados na Escola de arquitectura colonial francesa, que planeava ortogonalmente o terreno, opção favorecida pela orografia do terreno.
Em Nampula, sempre foi predominante a actividade comercial e de serviços, sendo as iniciativas industriais mais raras. Uma franja apreciável de comerciantes indo-paquistaneses – muitos deles já naturalizados – coexistia, em concorrência “pacífica”, com comerciantes de origem portuguesa. As cantinas tradicionais e outras lojas e armazéns mais convencionais, de comércio geral, coexistiam agora com estabelecimentos modernos e especializados: de moda, de que a Casa Dias era um dos exemplos mais acabado – com a casa mãe, a «Feira» e a sapataria –, de restauração (A pastelaria do Hotel Portugal, autêntico lugar de "glamour socialite" da “capital macua”, os restaurantes Escondidinho, Aquário, Floresta, Brasília, a Marisqueira, o exclusivista restaurante-bar Bagdad), de mercearia («Pegue-e-pague» e o supermercado Montegiro), bancários (o B.N.U., o Standard Totta, ostentando painel da autoria de Pancho Miranda Guedes e o Montepio), a casa de Fotografia Koy, as Livrarias Sonil e Villares, a Gelataria Dantas, entre tantos outros. Painel da autoria de Pancho Miranda Guedes na agência de Nampula do Banco Standard Totta
O edifício do Hotel Portugal, vendo-se o letreiro da Sapataria Dias, ao lado da Pastelaria do Hotel e observando-se, estacionado, o (grande) veículo do seu gerente, senhor A. Marques.



Além desses exemplos de arquitectura comercial, outros exemplares de equipamentos públicos civis exibiam uma arquitectura de qualidade invejável, como o Museu de Nampula (inaugurado durante a visita do Presidente Craveiro Lopes em 1956, e que durante algum tempo publicou um Boletim de inestimável valor no âmbito dos estudos etno-antropológicos), o Cinema Almeida Garrett, o Hospital Egas Moniz (na altura da sua inauguração considerado como um dos três melhor equipados de toda a África), o Clube Niassa (actual sede da Câmara Municipal de Nampula), os Colégios de Nossa Senhora das Vitórias e Vasco da Gama, a Escola Industrial e Comercial (e Ciclo Preparatório) Neutel de Abreu e o Liceu Gago Coutinho. O edifício do Clube Niassa, aquando da sua reconstrução, após incêndio. O Cine Teatro Almeida Garrett O Liceu Almirante Gago Coutinho
O Colégio Vasco da Gama



Para além disso, constatava-se uma assinalável qualidade arquitectónica em significativo número de projectos de edifícios residenciais, como os conjuntos de moradias que bordeja(va)m o Parque Felgueiras e Sousa, da Rua das Flores e do Bairro do Benfica, que coexistiam harmoniosamente com a traça arquitectónica colonial dos edifícios de data mais antiga. Pode dizer-se que um estilo «tropical» sucedia ao estilo «colonial». Vista parcial da cidade



A catedral, elemento arquitectónico que pontifica em local visível de praticamente toda a cidade, tem assinatura do arquitecto Raul Lino. Deve registar-se que o conjunto de edifícios religiosos cristãos, designadamente igrejas, de Moçambique não são exemplares de arquitectura muito atractiva, com excepção da catedral de Maputo e da igreja de St.º António da Polana, sob projecto do arquitecto Nuno Craveiro Lopes, que devido a divergências sobre a localização do altar, praticamente renegou a sua autoria. No entanto, a catedral de Nampula é um exemplo de alguma elegância construtiva, apesar de datada. Postal da catedral (vista do edifício do Tribunal)
A urbe civil era complementada pelos aquartelamentos militares, com enorme área de implantação, racionalmente acantonados na zona das «Companhias», lugar assim chamado por evocar o sítio da instalação das companhias militares que procederam à pacificação do território na época de Neutel de Abreu e do régulo Mukapera. Aspecto da cidade



Esta conjugação de circunstâncias potenciou um quadro de grande qualidade arquitectónica geral da cidade, tanto a nível de projecto urbanístico e traçado de arruamentos e disposição de equipamentos, como do edificado, o que emprestava uma inegável qualidade de vida aos seus habitantes mais favorecidos, o que – há-de notar-se – não era extensivo aos habitantes dos bairros periféricos, em rápida expansão, onde as infra-estruturas de redes de esgotos, de abastecimento de água, telefone e electricidade não chegavam.

domingo, 6 de novembro de 2011

Breve memória familiar e comercial da África Oriental portuguesa (XX) – A "Nampula cultural"

Talvez devido à sua ressonância histórica, Nampula, a par de Lourenço Marques, entretanto capital da província, foi sempre um meio culturalmente activo e dinâmico, actualizando-se relativamente à “metrópole” e ao estrangeiro.
Nampula tinha como equipamentos sociais, o Cine-Teatro Almeida Garrett, o Museu, o Hospital, os Clubes Niassa, Sporting, Ferroviário, Benfica, Socorros Mútuos, bem como as Rádios, sendo de destacar neste particular, a programação de inícios dos anos 70 do séc. XX, nalguns espaços de emissão nocturna, de música de intervenção, em que se ouvia José Afonso, Francisco Fanhais e José Mário Branco (sobretudo numa rubrica apresentada por João Carlos, que trabalhava na agência de viagens Zuid e era radialista nocturno). O Cine-Teatro Almeida Garrett, em primeiro plano, e os edifícios João Ferreira dos Santos e Hotel Portugal, em segundo

No Cine-Teatro Almeida Garrett (de M. Suleiman), para além da programação normal (Westerns, filmes italianos, filmes portugueses, filmes de Bollywood, e, por fim, de Karaté), albergava-se o Cine-Clube, que fazia criteriosa programação de filmes clássicos, desde o cinema americano (John Ford, Hitchcock, entre outros) aos filmes europeus da “nouvelle vague” do cinema francês e do neo-realismo italiano, como os de Jean-Luc Godard, Polansky, Truffaut, Rosselini, Fellini, Visconti e Bergman. O [Cine-Teatro] Almeida Garrett foi palco de inúmeras apresentações de teatro e de variedades, por companhias idas da metrópole, e de teatro de revista, sendo famosas as sessões tardias, em que, fora do horário normal, os machambeiros e solteirões do interior vinham comprar peças de joalharia na Ourivesaria Tito Martins, para oferecer às actrizes e coristas depois do espectáculo, num dos bares nocturnos da cidade. O Museu de Nampula (actual Museu Nacional de Etnologia)
O Museu (Regional Comandante Ferreira de Almeida) de Nampula, inaugurado em 1956 e cujo Boletim (semestral) constituiu publicação de referência mundial no domínio dos estudos da antropologia cultural e da etnografia, tendo o seu espólio servido de inestimável suporte ao monumental estudo (de quatro volumes) de Jorge Dias e Margot Dias sobre «Os Macondes de Moçambique» (editado pela Junta de Investigações do Ultramar, entre 1964 e 1970). Vista aérea do Hospital Egas Moniz
O moderno e avançado Hospital Egas Moniz era um equipamento de referência a nível internacional, no tocante a instalações de saúde pública e mesmo nalgumas especialidades, sendo complementado pela Casa de Saúde do Marrere (que pertencia à Diocese). Na época em que foi inaugurado, chegou a ser considerado o terceiro melhor equipado de toda a África. Vista do edifício de estabelecimento Cassam Vissram, primeira sede de João dos Reis em Nampula


Os estabelecimentos de ensino ministravam instrução de inquestionável qualidade, sendo dirigidos por directores de grande capacidade de gestão e craveira cultural, e onde leccionavam professores estabelecidos na cidade e onde, a certa altura, muitas esposas de militares também contribuíam para o respectivo corpo docente.


Vista parcial da cidade


Notícia da actuação de Amália em Nampula


Os três clubes principais, Sporting, Ferroviário e Niassa concentravam grande parte das actividades sociais e desportivas dos residentes brancos. As equipas de futebol desses e do Sport Nampula e Benfica disputavam o campeonato provincial, com jogos dominicais no estádio municipal. A frequência da piscina do Clube Ferroviário era uma ocupação incontornável para grande parte da população jovem e mesmo para muitos militares que se encontravam estacionados nos aquartelamentos. É de destacar, igualmente, a importância do Pavilhão de Desportos, onde além de inúmeras manifestações desportivas – com especial incidência no basquetebol no Minibasket, na patinagem artística, no hóquei em patins, no boxe – serviu de palco a actuações de grandes artistas, como Amália Rodrigues, por duas vezes. Mas servia, também, como sala de um Clube de Cinema, ali passando os filmes que mais agradavam à juventude (comédias italianas, westerns, filmes românticos e musicais, etc).


Amália, entre senhoras, no Clube Ferroviário de Nampula

Actividades predominantes do Pavilhão eram os espectáculos de boxe e, principalmente, os torneios de futebol de salão amador entre equipas que representavam diversas firmas da cidade. Entrega de prémios da patinadoras, no Pavilhão de Desportos do Clube Ferroviário


Estádio Municipal de Nampula


Conta-se, ainda, entre as ocupações desportivas e de lazer, o Centro Hípico, local onde muitos nampulenses aprenderam equitação com o saudoso Senhor Margarido, instrutor sábio e paciente para com os aprendizes.

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Série askari (21)

Askaris do Império colonial alemão (Tanganica), desfilando em Dar-es-Salam.

sábado, 22 de outubro de 2011

Breve memória familiar e comercial da África Oriental portuguesa (XIX) – Uma infância africana (3.ª parte)

A família Reis Bravo não vivia propriamente com dificuldades (embora não se pudesse dizer que vivia desafogadamente), mas sempre se fez questão de moderar as despesas, reutilizando e reciclando roupas, utensílios e livros escolares, havendo a clara noção da necessidade de racionalizar as finanças familiares. A mãe e os irmãos

Em termos educativos e disciplinares, os irmãos António e Jorge não deram especiais preocupações aos pais, tendo um percurso escolar normal. Privilegiavam-se como castigos as privações de privilégios e proibições de saídas de casa ou de idas ao cinema e à piscina, uma das principais atracções de recreio para a juventude de Nampula. Também era fomentado o mérito escolar, com a atribuição de prémios por notas elevadas. Tó entre amigos e crianças protegidas numa Missão


Entre os amigos mais próximos dos irmãos Tó e Jorge, podem enumerar-se, sempre com risco de alguma injustiça de omissão, os colegas Vidinhas, Francisco Matias, Nandocas e Ulisses Marta da Cruz, “Kiko”, Luís Moutinho, José (Manuel dos Reis) Pereira, Jorge Nascimento, Peixe, Xavier, José Miguel Morgado, Zé Rebelo, Tó Mané Correia. Entre as amigas, que também as havia, podem enumerar-se as irmãs Cruz, bem como as colegas Ângela Dias, Ana Maria Hernâni, Ângela Margarida (“Guida”) Pires, Nani Bragança, além dos irmãos e vizinhos Armando e Alda Gonçalves. Apenas uma vez, após “brincadeira” que poderia ter tido consequências muito nefastas – pedradas atiradas reciprocamente, tendo acertado uma no queixo de António –, o pai castigou ambos corporalmente (com reguadas nas mãos), após sutura do queixo de Tó, no Hospital, salientando de forma mais “veemente” a inconsciência e gravidade das consequências (para os próprios) da “brincadeira”. Aspecto parcial da Av. Presid. Carmona (actual Paulo S. Kankhomba)

Certo dia, um episódio fugiria à rotina no quotidiano de Jorge: encontrara um miúdo negro a pedir esmola, e não tinha dinheiro nem outros bens para lhe dar. Nessa altura, o camarão pequeno e o amendoim eram servidos gratuitamente quando acompanhassem cerveja ou outras bebidas, nos restaurantes e cafés. Pensou então num estratagema que, se batesse certo, aliviaria a fome do miúdo e dirigiram-se os dois à esplanada da Pousada Moura. Aí, pediu ao empregado que lhes trouxesse um prato de amendoim e um prato de camarão acompanhados de… água. O empregado ficou surpreendido, mas, ou porque tivesse percebido a situação ou porque tivesse decidido assumir ele alguma comparticipação na «despesa», serviu o pedido e trouxe os pratos de camarão e de amendoim, acompanhados de … água. O pequeno comeu, deliciadamente, o camarão e o amendoim, e Jorge bebeu água. Esplanada da Pousada Moura


No final, perguntou ao empregado «se…era alguma coisa»?, tendo-lhe este respondido que «Não», não deixando de sorrir, ante o expediente ardiloso para atenuar a fome daquele miúdo, do qual nunca mais soube. Jorge agradeceu ao empregado, que já conhecia de vista e entre ambos nasceu uma relação de respeito e amizade cúmplices, desde esse dia.






(Fotos ext. do Livro Recordações de Moçambique, Carlos Alberto Vieira, Aletheia Ed.)

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Vendedoras

Vendedoras, de E. Loureiro (in Lourenço Marques, edição da Direcção de Portos, Caminhos de Ferro e Transportes de Moçambique).


Breve memória familiar e comercial da África Oriental portuguesa (XVIII) – Uma infância africana (2.ª parte)

Também há que recordar alguns dos empregados mais relevantes da sociedade Domingos dos Reis & Sobrinho, Ld.ª.

O decano empregado da Casa Reis era Juma Martade, que fora admitido ainda antes do início da sociedade, por Domingos dos Reis, ancião respeitado e respeitável e figura influente no meio laboral das diversas firmas comerciais do centro da cidade, cujos empregados o consultavam quando havia conflitos e crispações com o patronato. Na firma Domingos dos Reis & Sobrinho já tinha um estatuto praticamente honorífico, apresentando-se no local de trabalho e supervisionando algumas tarefas de outros empregados.


É justo lembrar, ainda, as empregadas Dália, Mabília e Ivone Rente, que trabalharam durante algum tempo na firma. Juma Martade


Eugénio José Moreno foi um empregado que rapidamente se destacou e mereceu a confiança de José dos Reis Bravo, que observou nele dotes de inteligência, disciplina, ambição e capacidade de organização. Propôs-lhe que tirasse o Curso Nocturno de Contabilidade e Técnica Comercial na Escola Industrial e Comercial Neutel de Abreu, o que fez com bom aproveitamento. Sempre foi um empregado protegido e da maior confiança. É actualmente quadro de destaque numa empresa em Nacala-Porto. Eugénio José Moreno

Para além do sistema de ensino formal e institucional, Jorge aprendeu muito com o que hoje pode, com propriedade, chamar a “trindade de sabedoria africana», composta pelos seus três “mestres macuas”, Jumah Martade (o mais antigo e fiel empregado da Casa Reis), Roque (capataz do armazém da firma Zuid) e Ismaíl Sabur (mainato e cozinheiro da família). Os dois primeiros, mais velhos (“cocuanas”), e o terceiro eram repositórios de sabedoria oral, que Jorge gostava de escutar depois do almoço, na tranquila hora da «sesta» e na pausa do trabalho deles.


Aspecto parcial de Nampula



Todos eles eram muçulmanos, sendo Ismaíl, inclusivamente, uma espécie de auxiliar do imã da mesquita do seu bairro. Talvez fosse esse exotismo que atraía Jorge, ao “beber” as palavras das histórias daqueles dois anciãos e de Ismaíl, os quais não mostravam especial contemplação com as suas asneiras e pequenas traquinices infantis.

Censuravam-no e exortavam-no a respeitar “os madalas” (os velhos) porque isso era um valor sagrado para a sua cultura. As suas conversas não eram só sobre religião, versando muitos outros assuntos, como os costumes e tradições nativos, aspectos da história oral africana, a fauna e flora da região, a caligrafia árabe (por eles dominada, nos seus estudos religiosos), os acontecimentos da Província, a actualidade da guerra colonial, a situação social e laboral dos negros nativos.

Formavam uma roda, geralmente no corredor de acesso ao armazém da Zuid, em que fumavam cigarros Havana (de que Jumah se abastecia, por ter a prerrogativa de não pagar o tabaco na Casa Reis) e aos quais se juntavam outros trabalhadores de empresas vizinhas na hora da pausa de trabalho. Apesar de falarem em macua, tinham a gentileza de traduzir para português o que Jorge não compreendia. Esses ensinamentos e aprendizagens contribuíram inconscientemente, mas de forma decisiva, para a formação da personalidade de um rapazito curioso. Os irmãos na piscina de maré da Ilha de Moçambique


José e Maria Vitória sempre fizeram questão de inculcar nos filhos o respeito por todas as pessoas, independentemente da raça, religião, profissão ou estatuto sócio-económico, o que era apanágio do próprio relacionamento comercial da Casa Reis, que não estabelecia qualquer tipo de descriminação entre os seus clientes. Acima de tudo, vigorava uma lógica de respeito geral pela condição de todas as pessoas, incentivando o convívio com colegas de todas as raças e condições sociais e económicas, o que se traduzia na prática quotidiana da vida escolar, desportiva e social dos irmãos António e Jorge.

José dos Reis Bravo, com cliente, no estabelecimento


José dos Reis Bravo, com dois filhos de trabalhadores da machamba dos amigos José e Maria Ricardo

sábado, 8 de outubro de 2011

Breve memória familiar e comercial da África Oriental portuguesa (XVII) – Uma infância africana

Em Setembro de 1964 junta-se à família, em Nampula, José Manuel Roxo de Almeida, irmão de Maria Vitória, que fora contratado para trabalhar no Banco Nacional Ultramarino, o qual ficou, naturalmente, instalado na casa da família, passando a ser um membro integrante do agregado familiar, quase um irmão mais velho dos sobrinhos. A sua presença constituiu sempre um apoio amigo e disponível para os sobrinhos, que nele reconhecem o exemplo de dedicação e interesse pela sua formação e instrução, que ajudou a completar.





Maria Vitória, José Manuel e os irmãos Jorge e António




Após o nascimento dos dois filhos mais velhos (o terceiro viria a nascer em 1972), o casal Reis Bravo, que estava já integrado no meio comercial de Nampula, procurou sempre que os mesmos tivessem as experiências normais dos rapazes da Província, na época. Para além de outras amizades já solidamente estabelecidas, deve salientar-se a da família composta por José Miguel Morgado (futuro reitor do Liceu de Nampula e Presidente da Câmara Municipal) e Maria Dulce Morgado, que foi professora primária de Jorge, e com quem sempre mantiveram relacionamento de grande amizade. Muitos outros amigos – alguns já falecidos – integravam o seu círculo de relacionamento social, no qual se incluíam Dégio (desenhador técnico municipal) e Ju Moutinho (da Pendray & Sousa) e seu filho Luís, Arnaldo Constantino e família, a família Nazaré (da Espingardaria Nazaré), a família Marcelino e Luísa Cruz (contabilistas) e seus filhos. Os irmãos em Angoche, em 1967


A escolaridade de António (Tó) e Jorge foi nas Escolas Primárias Roberto Ivens e Pêro da Covilhã, tendo Jorge feito a 3.ª classe em Castelo Branco, onde esteve com os avós, por motivos de saúde, onde teve como mestre o saudoso Professor Tomé, na Escola do Bairro do Cansado.
É de evidenciar a qualidade do ensino nessa época ministrada, sendo de elementar justiça realçar o magistério das professoras Maria Dulce Morgado e Fernanda Louçã, cuja metodologia de trabalho e dedicação aos alunos ficaram como exemplo para Jorge. De sublinhar, ainda, a orientação que Jorge tinha com a Professora Lizete Matias (irmã da Professora fernanda Louça e esposa do Director Escolar, Dr. Matias), por ser colega do filho, Francisco Matias, e com ele estudar e brincar em conjunto.



Os irmãos e Liró


As Férias de família eram passadas quase invariavelmente na praia das Chocas e os tempos livre de fim-de-semana, na piscina do Ferroviário. Os irmãos na Piscina do Clube Ferroviário


Podem também recordar-se professores do então chamado Ciclo Preparatório – que funcionava na Escola (Técnica) Industrial e Comercial Neutel de Abreu –, como o professor Hermínio Cruz (Matemática), os Mestres Kay e Pereirinha (Trabalhos Manuais), o Professor Vamona Sinai Navelcar (Desenho) – conhecido como “Ganesh” nos circuitos internacionais das Artes Plásticas –, artista de enorme talento, o Professor Aristides Abreu (Francês), que muita influência tiveram na instrução e na formação integral (técnica, artística e humana) dos irmãos. Já no Liceu Gago Coutinho, não seria legítimo esquecer a Professora Gulbano (Geografia) e os Professores Câmara Pestana (Ed. Física) e esposa, Maria da Luz (Francês).

O sistema de ensino, na época, não era inclusivo, não providenciando escolarização à grande maioria das crianças nativas. Havia, é certo, colegas negros nas escolas da cidade, que eram sobretudo filhos de operários especializados (sobretudo dos Caminhos de Ferro e firmas da cidade), de enfermeiros, de funcionários da administração, os quais, apesar de integrados, eram uma minoria. A escolarização das camadas da população nativa era feita maioritariamente nas Escolas das Missões católicas e protestantes, e nos Seminários e, no tocante a escalões etários superiores, nos Cursos Nocturnos, que eram ministrados na Escola Técnica Neutel de Abreu.
A família no Parque Felgueiras e Sousa



António e Jorge nunca foram especialmente cumpridores dos deveres (voluntários) da Mocidade Portuguesa, que vela, canoismo, parquedismo, ténis de mesa e outras) que, apesar de tudo, revestiam inequívoco interesse para a formação integral dos jovens. Porém, as atenções da altura eram dirigidas para outros domínios e havia que contar, também, com a “concorrência” do Corpo Nacional de Escutas, que despertou a preferência dos irmãos, sendo ambos «lobitos» no Agrupamento da Paróquia, do Chefe Petim, tendo Jorge chegado a ser "Chefe de Alcateia" e vindo António a manter-se ligado até hoje, como dirigente, ao CNE.



Os «lobitos» António, "Kiko" e Jorge, junto à Casa Reis

A prática de diversos desportos era uma constante, desde o futebol, passando pelo ténis e ténis de mesa, ao Minibasket, desporto na época, em fase de implantação e que mereceu logo a adesão de Jorge, em várias equipas, algumas orientadas pelo saudoso treinador “Bic” e pelo treinador-adjunto “Frank”.


A brilhante equipa de Minibasket, treinada por mestre "Bic" e pelo adjunto "Frank", no Pavilhão de Desportos do Clube Ferroviário; sentados, da esquerda para a direita, Mário Lisboa (depois jogador e treinador da mais alta craveira, em Moçambique e em Portugal), Carlos Conceição, Márito Marta da Cruz (mascote), Zé Duro, Rui Pratas Ribeiro; de pé, João Carlos ("Russo"), Júlio (Lito) Peixe, Fernando (Nandocas) Marta da Cruz, mestre "BIC", Jorge Bravo, Carlos Osório de Castro e "Frank", treinador-adjunto.