segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Passos da Cruz

VI.

Venho de longe e trago no perfil,
Em forma nevoenta e afastada,
O perfil de outro ser que desagrada
Ao meu actual recorte humano e vil.

Outrora fui talvez, não Boabdil,
Mas o seu mero último olhar, da estrada
Dado ao deixado vulto de Granada,
Recorte frio sob o unido anil...

[Fernando Pessoa]

sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Evis Costello - «She»

Grandiosos
podem não ser só
os amores clandestinos
Mas é por serem
contrariados e reprimidos
que assumem a plenitude

domingo, 30 de novembro de 2008

Os Dias de sempre

Prolonguemos a noite
evitando o intempestivo atraso
dos dias amanhecidos
e claros, que revelam
as imperfeições do corpo e dos sentidos

e desviemos o sortilégio amargo
de viver por nós
e de viver pelos outros

queiramos o quotidiano
simples e imediato
dos irresolutos avatares

domingo, 23 de novembro de 2008

"Quadras da minha solidão"

Fica longe o sol que vi,
aquecer meu corpo outrora...
Como é breve o sol daqui!
E como é longa esta hora...

Donde estou vejo partir
quem parte certo e feliz.
Só eu fico. E sonho ir,
rumo ao sol do meu país...

Por isso as asas dormentes,
suspiram por outro céu.
Mas ai delas! tão doentes,
não podem voar mais eu...

que comigo, preso a mim,
tudo quanto sei de cor...
Chamem-lhe nomes sem fim,
por todos responde a dor.

Mas dor de quê? dor de quem,
se nada tenho a sofrer?...
Saudade?...Amor?...Sei lá bem!
É qualquer coisa a morrer...

E assim, no pulso dos dias,
sinto chegar outro Outono...
passam as horas esguias,
levando o meu abandono...

[Alda Lara]

sábado, 22 de novembro de 2008

Azagaia - «As Mentiras da Verdade»

Azagaia, o rapper moçambicano "maldito" actuou no fecho da campanha eleitoral de Deviz Simango, o candidato independente ao Município da Beira.
Contra os partidos predominantes, ganhou as eleições locais na 2.ª cidade do País; pode bem ser o um exemplo do que poderá vir a ser o futuro do sistema político em Moçambique, em que os eleitores já não se revêem em fórmulas gastas de propostas político-partidárias.
Um candidato com claro apoio na população, boicotado pelo governo central, insinuado de corrupto, feitiçeiro, criminoso, Simango já é chamado de «Obama do Chiveve».
Parabéns, Simango e Força para arrostar com uma bem pesada tarefa na luta por um Moçambique melhor e mais justo.

Hai ku

Órgãos digestão

Órgãos de gestão

terça-feira, 11 de novembro de 2008

domingo, 19 de outubro de 2008

Ilha de Moçambique - 3 Actos






Fotos de Belinha Morgado ©

domingo, 28 de setembro de 2008

Fascínio suaíli

(Foto de Belinha Morgado ©)

Jean Paul-Gaultier, John Galliano e Karl Lagerfeld que vão «pentear macacos».

Elegância macua

(Foto de Belinha Morgado ©)


É difícil a manutenção dos edifícios
na Ilha
pois neles recomeça
a gesta de todo o peso
da história

o cheiro dos madeiramentos
carcomidos
súbito o salitre
e a cal que se desprende
das paredes largas
e dos portais

e pousa triturado
no rosto-m´siro
das mulheres

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

As coisas inevitáveis

As coisas inevitáveis
sucedem
quanto mais se pensam evitar

como roldanas
que não travam
arrastando os graves
na imponderabilidade aparente
de uma meteórica subida
sem limite palpável

domingo, 21 de setembro de 2008

Concepções

«Eu às vezes penso que isto, que se afigura possível a muita gente na Europa, de civilizar o preto em África é simplesmente absurdo.
[...]
É preciso que em África haja por cada preto um branco para se realizar esse sonho de muitos espíritos elevados do velho mundo; porque só então o elemento civilizador equilibrará com o selvagem e poderá vencê-lo.
Temos até um exemplo disto com os Bóeres do Transval, que, europeus de origem, em um século apenas perderam tudo que de civilização trouxeram da Europa, foram vencidos pelo elemento selvagem do meio em que viviam e hoje, se são europeus pela cor e pela religião de Cristo que professam, são bárbaros pelos costumes que tiraram do país.»

Serpa Pinto, Como eu atravessei a África.

terça-feira, 16 de setembro de 2008

Das coisas

O criar
das coisas que não são
o que são

e o destruir
das coisas que são
o que não são

Portas abertas da Ilha de Moçambique







sexta-feira, 12 de setembro de 2008

Mar de Cristo

Georges! anda ver o meu país de marinheiros...
Georges! anda ver o meu país de marinheiros,

O meu país das naus, de esquadras e de frotas!
Oh as lanchas dos poveiros

A saírem a barra, entre ondas de gaivotas!
Que estranho é!
Fincam o remo na água, até que o remo torça,
À espera da maré,
Que não tarda aí, avista-se lá fora!
E quando a onda vem, fincando-o a toda a força
Clamam todos à uma: “Agôra! agôra! agôra!”
E, a pouco e pouco, as lanchas vão saindo
(Às vezes, sabe Deus, para não mais entrar...)
Que vista admirável! Que lindo! Que lindo!
Içam a vela, quando já não têm mar:
Dá-lhes o vento e todas, à porfia
Lá vão soberbas, sob um céu sem manchas,
Rosário de velas, que o vento desfia,
A rezar, a rezar a Ladaínha das Lanchas:

Senhora Nagonia!
Olha acolá!
Que linda vai com seu erro de ortografia...
Quem me dera ir lá!

Senhora Daguarda!

(Ao leme vai o mestre Zé da Leonor)
Parece uma gaivota: aponta-lhe uma espingarda
O caçador!

Senhora d`ajuda!
Ora pro nobis!
Caluda!
Semos pobres!

Senhor dos ramos
Istrela do mar!
Cá bamos!

Parecem Nossa Senhora, a andar.
Senhora da Luz!

Parece o farol...

Maim de Jesus!

É tal qual ela, se lhe dá o sol!

Senhor dos Passos!
Sinhora da Ora!

Águias da voar, pelo mar dentro dos espaços
Parecem ermidas caiadas por fora...

Senhor dos Navegantes!
Senhor de Matusinhos!

Os mestres ainda são os mesmos dantes:
Lá vai o Bernardo da Silva do Mar,
A mailos quatro filhinhos,
Vascos da Gama que andam a ensaiar...

Senhora dos Aflitos!
Martir São Sebastião!
Ouvi os nossos gritos!
Deus nos leve pela mão!
Bamos em paz!

Oh lanchas Deus vos leve pela mão!
Ide em paz!

Ainda lá vejo o Zé da Clara, os Remelgados,
O Jeques, o Pardal, na Nam Te Perdes,
E das vagas, aos ritmos cadenciados,
As lanchas vão traçando, à flor das águas verdes,
“As armas e os varões assinalados...”

Lá sai a derradeira!
Ainda agarra as que vão na dianteira...
Como ela corre!Com que força o vento a impele:

Bamos com Deus!
Lanchas, ide com Deus! ide e voltai com Ele

Por esse mar de Cristo...Adeus! adeus! adeus!

[António Nobre]

domingo, 7 de setembro de 2008

Dhows


O perto longe dos mangais
de terra firme
e a quietude da contra-costa
farão embarcar
os viajantes de um improvável sonho
apeados, agora, de um riquexó.

A Ilha, em dia encoberto



Mansamente, aproximas-te
de um lugar ignorado pelos que ficam
em terra
e a nave resiliente
aporta do seu destino

sábado, 30 de agosto de 2008

Babel

Babel é já o Mundo
Porquê, então, o caos?

Babel coloniza-nos
pela intimidade dos povos,
sem precisão de salvo-conduto.
Falamos japonês nos Champs Élysées
Beckett é lido nas montanhas de Kandahar
comunica-se castelhano em Tiannamen
e o céu protege-nos em Tânger
é provável escutar suaíli no calçadão do Rio
ou rezar em yiddish no Kilimanjaro
decerto falaremos português no Ceilão.

O Mundo é já Babel
Porquê, então, o caos?

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Coração em África IV

Chora coração meu estala coração meu enternece-te meu coração
de uma só vez (oh orgão feminino do homem)
de uma só vez para que possa pensar contigo em África
na esperança de que para o ano vem a monção torrencial
que alagará os campos ressequidos pela amargura da metralha
e adubados pela cal dos ossos de Taszlitzki
na esperança de que o Sol há-de prenhar as espigas de trigo
para os meninos viciados
e levará milho às cabanas destelhadas do último rincão da Terra
distribuirá o pão o vinho e o azeite pelos aliseos;
na esperança de que as entranhas hiantes de um menino antípoda
haja sempre uma túlipa de leite ou uma vaca de queijo que lhe mitigue a sede da existência. Deixa-me coração louco
deixa-me acreditar no grito de esperança lançado pela paleta viva de Rivera
e pelos oceanos de ciclones frescos das odes de Neruda;
deixa-me acreditar que do desespero másculo de Picasso sairão pombas
que como nuvens voarão os céus do mundo de coração em África.

[Francisco José Tenreiro]

Coração em África III

De coração em África em noites de vigília escutando o olho mágico do rádio
e a rouquidão sentimento das inarmonias de Armstrong.
De coração em África em todas as poesias gregárias ou escolares que zombam
e zumbem sob as folhas de couve da indiferença
mas que têm a beleza das rodas de criança com papagaios garridos
e jogos de galinha branca vai até França
que cantam as volutas dos seios e das coxas das negras e mulatas de olhos rubros
como carvões verdes acesos.
De coração em África trilho estas ruas nevoentas da cidade
de África no coração e um ritmo de be bop be nos lábios
enquanto à minha volta se sussurra olha o preto (que bom)
olha um negro (óptimo) olha um mulato (tanto faz) olha um moreno (ridículo)
e procuro no horizonte cerrado da beira-mar
cheiro de maresias distantes de areais distantes
com silhuetas de coqueiros conversando baixinho à brisa da tarde
De coração em África na mão deste Negro enrodilhado e sujo de beira-cais
vendendo cautelas com a incisão do caminho da cubata
perdida na carapinha alvinitente;
de coração em África com as mãos e os pés trambolhos
disformes e deformados como os quadros de Portinari
dos estivadores do mar
e dos meninos ranhosos viciados pelas olheiras fundas das fomes de Pomar
vou cogitando na pretidão do mundo que ultrapassa da própria cor da pele
dos homens brancos amarelos negros ou às riscas
e o coração entristece à beira-mar da Europa
da Europa por mim trilhada de coração em África;
e chora fino na arritmia de um relógio cuja corda vai estalar
soluça a indignação que fez os homens escravos de homens
mulheres escravas de homens crianças escravas de homens
negros escravos dos homens
amarelos e brancos e brancos e amarelos e negros escravos sempre dos homens
e também aqueles de que ninguém fala e eu Negro não esqueço
como os pueblos e os xavantes os esquimós os aïnos eu sei lá
que são tantos e todos escravos entre si.

[Francisco José Tenreiro]

Coração em África II

Em três linhas (sentidas saudades de África) -
Mac Gee cidadão da América e da democracia
Mac Gee cidadão Negro e da negritude
Mac Gee cidadão Negro da América e do Mundo Negro
Mac Gee fulminado pelo coração endurecido feito cadeira eléctrica
(do cadáver queimado de Mac Gee do seu coração em África e sempre vivo
floriram flores vermelhas flores vermelhas flores vermelhas
e também azúis e também verdes e também amarelas
na gama polícroma da verdade do Negro
da inocência de Mac Gee) -;
três linhas no jornal como um falso cartão de pêsames.

Caminhos trilhados na Europa
de coração em África.
De coração em África com o grito seiva bruta dos poemas de Guillén
de coração em África com a impetuosidade viril de I too am América
de coração em África com as árvores renascidas em todas estações
nos belos poemas de Diop
de coração em África nos rios antigos que o Negro conheceu
e no mistério do Chaka-Senghor
de coração em África contigo amigo Joaquim quando em versos incendiários
cantaste a África distante do Congo da minha saudade do
Congo de coração em África.
De coração em África ao meio dia do dia de coração em África
com o Sol sentado nas delícias do zénite
reduzindo a pontos as sombra dos Negros
amodorrando no próprio calor da reverberação
os mosquitos
da nocturna picadela.

[Francisco José Tenreiro]

Coração em África I

Caminhos trilhados na Europa
de coração em África.
Saudades longas de palmeiras vermelhas verdes amarelas
tons fortes da paleta cubista
que o Sol sensual pintou na paisagem;
saudade sentida de coração em África
ao atravessar estes campos do trigo sem bocas
das ruas sem alegria com casas caiadas
pela metralha míope da Europa e da América
da Europa trilhada por mim Negro de coração em África.
De coração em África na simples leitura dominical
dos periódicos cantando na voz ainda escaldante da tinta
e com as dedadas de miséria dos ardinas das cities boulevards e baixas da Europa
trilhada por mim Negro e por ti ardina
cantando dizia eu em sua voz de letras as melancolias
do orçamento que não equilibra
do Benfica venceu o Sporting ou não
ou antes ou talvez seja que desta vez vai haver guerra
para que nasçam flores roxas de paz
com fitas de veludo e caixões de pinho;
oh as longas páginas do jornal do mundo
são folhas enegrecidas de macabro blue
com mourarias de facas e guernicas de toureiros.

[Francisco José Tenreiro]

terça-feira, 29 de julho de 2008

Ilha do Moçambique: memórias do "colonial-fecalismo"

«Apareceu-me hoje de manhã no Tribunal um preto muçulmano, em estado andrajoso e, para mais, cego de um olho e mudo, o que, como está bom de calcular, gerou sérios problemas de comunicação. Acresce que não compreendia bem Português e, aparentemente, tampouco encontrava motivo para a sua detenção, pelo que se encontrava bastante agitado, chorando e esbracejando, a um tempo. Condoído da sua figura patética, averiguei o que se passara.

Abibo, é esse o seu nome, chegara ontem do continente, mais precisamente de uma das praias que se avistam da costa ocidental da Ilha, e desconhecia por completo as normas desta municipalidade. Fôra apanhado a defecar na praia como é uso na sua terra, até por aí não haver pedagogia em contrário, latrinas ou bacios. E, até com certa lógica, não acham os nativos melhor sítio para fazerem as suas necessidades, posto que a água do mar, com que se lavam depois do serviço, se encarrega em seguida de levar a imundice para longe. O hábito só pode, porém, ser considerado menos maus em locais onde não haja senhoras, o que não é aqui o nosso caso.

E foi assim que um sargento do exército foi alertado para o sucesso ao ouvir os gritos de Madame Benoit, uma viúva francesa que aqui permaneceu após a morte do marido, que jazia desmaiada no pavimento, tomada de indignação exacerbada pela visão do traseiro do mudo Abibo.

O mudo vai ser amanhã presente ao Juiz, embora se adivinhe que o esperam já uns dias de cadeia, por não ter com que pagar a elevada coima correspondente ao crime em causa.

Não se sabe, aliás, se será acusado de despejos ilícitos ou de atentado ao pudor.»

Mariano Gracias, Ilha de Moçambique, 4 de Agosto de 1899 (de Muhípiti, de Miguel Martins, Erasmus).

sábado, 19 de julho de 2008

Ilha de Moçambique

Na exaltação
dessa tranquilidade crespuscular

sentado na balaustrada
da conta-costa
de Muhipíti
de onde se alcança
a Ilha de Goa e os mangais da Cabaceira

Ouve-se o coro dos pescadores
que regressam nos dhows
trazendo a bordo
toda a confluência memorial
das raças, credos e saberes
dos homens
que lá se cruzaram

e ficar,
a saborear o vento
na frescura
das casuarinas
depois das luzes se acenderem
no Mossuril

terça-feira, 8 de julho de 2008

A Ilha, a preto e a cor

Exposição de fotografia de Sérgio Santimano e de Luis Abelard.
Inaugura amanhã, na Fábrica de Braço de Prata (Olivais), em Lisboa.
Do ma-schamba, com a devida vénia, rentransmite-se a informação.
A visitar.

sábado, 28 de junho de 2008

«Ficar sem algumas das coisas que desejamos é parte indispensável para a felicidade»

[Bertrand Russel]

quinta-feira, 26 de junho de 2008

«Não é que eu não tenha fé na humanidade. Deixei foi de acreditar nos homens»

Fala do velho Mariano

Mia Couto, Um rio chamado Tempo, uma casa chamada Terra.
«Todos sabemos que coincidência é coisa que acontece, mas que nunca existe».

[Mia Couto] Um rio chamado Tempo, uma casa chamada Terra

sábado, 21 de junho de 2008

«Procuramos acima de tudo, o Absoluto, e só encontramos coisas»

[Novalis]

segunda-feira, 16 de junho de 2008

Hai ku


Fever
Ferve

sexta-feira, 6 de junho de 2008

Hai ku

Diz o culto
Desoculto
O culto
Oculto

quarta-feira, 4 de junho de 2008

Hai ku

De - ter
Deter
De - reter
Derreter

quarta-feira, 28 de maio de 2008

Basma {44}

Faz da tua vida
o teu caminho sem ver
o que vem à frente
BASMA (44)


[Jall Sinth Hussein]

quinta-feira, 8 de maio de 2008

Canto do nosso amor sem fronteira

Estamos juntos.
E moçambicanas mãos nossas
dão-se
e olhamos a paisagem e sorrimos.

Não sabemos de áreas de esterlino
de câmbios
vistos de fronteira
zonas de marco e dólar
portagem do Limpopo
canais de Suez e do Panamá.

Amamo-nos hoje numa praia das Honduras
estamos amanhã sob o céu azul da Birmânia
e na madrugada do dia dos teus anos
despertamos nos braços um do outro
baloiçando na rede da nossa casa na Nicarágua.

Ou
com os olhos incendiados
nos poentes do Mediterrâneo
recordamos as noites mornas da praia da Polana
e a beijos sorvo a tua boca no Senegal
e depois tingimos mutuamente
os lábios com as negras amoras de Jerusalém
ambos entristecidos ao galope dos pés humanos
sem ferraduras mas puxando riquexós
só de ver puxar nós também puxamos
nas transpiradas ruelas antigas
da ilha de Moçambique.

Oh, beijemo-nos, amor
teus cabelos sussurrantes
na esplêndida nudez morena do meu peito
que são nossos os céus sulcados de xiricos e aviões
e nossos irmãos os povos de outros paralelos
até mesmo os pobres «boers» solitários
na cruzada de amor em que me abraças numa rua
principal da cidade de Pretória descontraidamente
como se fosse no bairro de Xipamanine.

Mas bem fundo das almas
e dos corpos tatuados de esperança
o clítoris das montanhas nos sexos das nuvens
pátria do nosso desespero mais desesperado
pátria dos pés descalços na brancura do algodão
pátria de beijos e promessas de mais beijos
é o nosso genuíno grito mais gritado
a levantar no cosmos a beleza do nome
não renegável de Moçambique.

[José Craveirinha]

domingo, 20 de abril de 2008

Hai ku

Arde
o ar de
fogo?

quarta-feira, 9 de abril de 2008

Do Mar o incriado nasce

A ilha existe não porque a achasses
mas porque a nomeias coração do vento
capaz deste segredo vontade grega
de amar o que a alma intui e cria.

E de tal modo ela seria e é desejo
que tudo esqueço para vê-la nua
devir do sentido no seu sentido vago
louco amor agreste que a utopia apela.

Na ausência de limites para o que sonhas
vacilante avanço ágil mas sem asas
sem medida luz do fragmentado verbo.

Rio e choro sendo a máscara e o rosto
Nomeado língua capaz do que não sei
Suspenso o tempo do mar o incriado nasce.


Virgílio de Lemos
[Ilha de Moçambique, 1952]

terça-feira, 8 de abril de 2008

Perguntas à Língua Portuguesa - Mia Couto

Venho brincar aqui no Português, a língua. Não aquela que outros embandeiram. Mas a língua nossa, essa que dá gosto a gente namorar e que nos faz a nós, moçambicanos, ficarmos mais Moçambique. Que outros pretendam cavalgar o assunto para fins de cadeira e poleiro pouco me acarreta.

A língua que eu quero é essa que perde função e se torna carícia. O que me apronta é o simples gosto da palavra, o mesmo que a asa sente aquando o voo. Meu desejo é desalisar a linguagem, colocando nela as quantas dimensões da Vida. E quantas são? Se a Vida tem é idimensões?

Assim, embarco nesse gozo de ver como escrita e o mundo mutuamente se desobedecem. Meu anjo-da-guarda, felizmente, nunca me guardou.

Uns nos acalentam: que nós estamos a sustentar maiores territórios da lusofonia. Nós estamos simplesmente ocupados a sermos. Outros nos acusam: nós estamos a desgastar a língua. Nos falta domínio, carecemos de técnica. Ora qual é a nossa elegância? Nenhuma, excepto a de irmos ajeitando o pé a um novo chão. Ou estaremos convidando o chão ao molde do pé? Questões que dariam para muita conferência, papelosas comunicações. Mas nós, aqui na mais meridional esquina do Sul, estamos exercendo é a ciência de sobreviver. Nós estamos deitando molho sobre pouca farinha a ver se o milagre dos pães se repete na periferia do mundo, neste sulbúrbio.

No enquanto, defendemos o direito de não saber, o gosto de saborear ignorâncias. Entretanto, vamos criando uma língua apta para o futuro, veloz como a palmeira, que dança todas as brisas sem deslocar seu chão. Língua artesanal, plástica, fugidia a gramáticas.
Esta obra de reinvenção não é operação exclusiva dos escritores e linguistas. Recriamos a língua na medida em que somos capazes de produzir um pensamento novo, um pensamento nosso. O idioma, afinal, o que é senão o ovo das galinhas de ouro?
Estamos, sim, amando o indomesticável, aderindo ao invisível, procurando os outros tempos deste tempo. Precisamos, sim, de senso incomum. Pois, das leis da língua, alguém sabe as certezas delas?

Ponho as minhas irreticências. Veja-se, num sumário exemplo, perguntas que se podem colocar à língua:

· Se pode dizer de um careca que tenha couro cabeludo?
· No caso de alguém dormir com homem de raça branca é então que se aplica a expressão: passar a noite em branco?
· A diferença entre um ás no volante ou um asno volante é apenas de ordem fonética?
· O mato desconhecido é que é o anonimato?
· O pequeno viaduto é um abreviaduto?
· Como é que o mecânico faz amor? Mecanicamente.
· Quem vive numa encruzilhada é um encruzilhéu?
· Se diz do brado de bicho que não dispõe de vértebras: o invertebrado?
· Tristeza do boi vem de ele não se lembrar que bicho foi na última reencarnação. Pois se ele, em anterior vida, beneficiou de chifre o que está ocorrendo não é uma reencornação?
· O elefante que nunca viu mar, sempre vivendo no rio: devia ter marfim ou riofim?
· Onde se esgotou a água se deve dizer: "aquabou"?
· Não tendo sucedido em Maio mas em Março o que ele teve foi um desmaio ou um desmarço?
· Quando a paisagem é de admirar constrói-se um admiradouro?
· Mulher desdentada pode usar fio dental?
· A cascavel a quem saiu a casca fica só uma vel?
· As reservas de dinheiro são sempre finas. Será daí que vem o nome: "finanças"?
· Um tufão pequeno: um tufinho?
· O cavalo duplamente linchado é aquele que relincha?
· Em águas doces alguém se pode salpicar?
· Adulto pratica adultério. E um menor: será que pratica minoritério?
· Um viciado no jogo de bilhar pode contrair bilharziose?
· Um gordo, tipo barril, é um barrilgudo?
· Borboleta que insiste em ser ninfa: é ela a tal ninfomaníaca?

Brincadeiras, brincriações. E é coisa que não se termina. Lembro a camponesa da Zambézia. Eu falo português corta-mato, dizia. Sim, isso que ela fazia é, afinal, trabalho de todos nós. Colocámos essoutro português – o nosso português – na travessia dos matos, fizemos com que ele se descalçasse pelos atalhos da savana.

Nesse caminho lhe fomos somando colorações. Devolvemos cores que dela haviam sido desbotadas – o racionalismo trabalha que nem lixívia. Urge ainda adicionar-lhe músicas e enfeites, somar-lhe o volume da superstição e a graça da dança. É urgente recuperar brilhos antigos. Devolver a estrela ao planeta dormente.

domingo, 6 de abril de 2008

terça-feira, 1 de abril de 2008

Whampula

Tinha-me esquecido
não de ti,
mas dos cabeços pétreos,
sentinelas imemoriais
que te rodeiam


Tinha-me esquecido
não das ruas ortogonais
que delimitam os passos
regulares e despreocupados
das gentes
de todas as raças


Esqueci-me, sim,
das imensidões brancas
do algodão em terra de negros,
e dos jocosos
gala-galas imponentes
que se fartavam de
arremeter escarninhos olhares


Tinha-me esquecido
que, afinal,

havia aquíferos
onde antes campeava a malária
e os beligerantes se saudavam
como irmãos
antes da batalha


Mas não esqueci,
não pude esquecer,
o riso branco das crianças
as mãos calosas do Ismahíl
o peito magro do Jumah
a ambição do Eugénio
e o chikwembo do Pastola


Guardo, porém,
todos segredos de uma juventude
precocemente abreviada
e confio,
às escondidas,
na força dos embondeiros.

sexta-feira, 28 de março de 2008

A Ilha «em voo de pássaro»

Um link directo para a Ilha de Moçambique.


Ver mapa maior

quarta-feira, 26 de março de 2008

Cavaco Silva na Ilha de Moçambique



Cavaco Silva visita hoje a Ilha de Moçambique.
JPT discorre no seu ma-schamba sobre a circunstância.
Oxalá algo de positivo possa resultar.
P.S. Já que tanto se fala do estado do Cemitério militar português de Pemba, fica imagem do estado do cemitério da Ilha, onde também seria necessário «deitar uma mãozinha»...

segunda-feira, 24 de março de 2008

Fecundo o húmus

Dizer fértil
a veiga do Lima
ou as margens do Zambeze

e Zanzibar ao largo
num replandescente
ocaso no negrume
é eclusa a fechar o barco

há um crescente iluminando
a noite da Índia
e a tracção humana
do riquexó

dizer amado
solo sagrado
depois de transbordar
fecundo o húmus

segunda-feira, 17 de março de 2008

Nau perdida

Poucas vezes
aportou essa nau
ao largo da fortaleza

a sua equipagem dessedentava-se
no campo de S. Gabriel
à sombra rala das casuarinas

e gozava com as pretas
durante a estada
deixando passar a monção
embebedando-se com otekha

houve nessas paragens
heróis com escorbuto
e santos vivos ungindo
os moribundos
no adro da capela do baluarte

e no conto da companhia das Índias
estão ainda assentes os proveitos e as voltas
dessa lenta nau perdida
num tempo de presságio
apagado
de vez

sexta-feira, 14 de março de 2008

"Ilha de Moçambique"

Ilha de oiro e angústia
Feita de sol e de prata
Marfim talhado em relíquias
Cobre batido do vento
Num moinho de saudades.

Fortaleza escancarada
A memórias esquecidas...

Senhora do Baluarte velando
As brancas velas do Canal.

Sermões de S. Francisco Xavier
Guardados nas rochas de coral.

Riquexós vagueando ao sol
Brancas praias sonolentas
Enfeitadas de saris e cofiós
Brancos, pretos, encarnados

E rostos cor da verdade
De viver num monumento
De prata, de oiro e de cobre
Cobre batido do vento...

Pórtico dos sonhos, momento
de índias descobertas e vencidas
Monumento, monumento,
De memórias esquecidas...

Além-portas de marfim
Paredes meias com a História
Dentro da fama e memória
Para que nela sempre fique
A Ilha de Moçambique.


[Neves e Sousa]

terça-feira, 11 de março de 2008

Lágrimas do Índico


Penso nas árvores
quinhentistas
derrubadas

na conformada
aceitação do sortilégio
das gentes da Ilha

penso no imprompto
redemoinho
gerado talvez no meio do mar
ou no seio da terra

nos ventos uivantes
e avassaladores
de salitre e lágrimas

desabando
inclementes
sobre os barcos

domingo, 9 de março de 2008

Tempestade na Ilha



No ma-schamba de ontem dava-se conta de destruições, por tempestade natural "muito violenta", na Ilha de Moçambique.

É que a Ilha é local muito exposto, muito frágil. Um tufão monçónico ou tropical era o que menos falta fazia, agora, nessa tão amargurada terra.

Sabêmo-lo bem, a marginal da contra-costa estava em vias de destruição iminente, com marés mais violentas ou ondas fortes (que felizmente não abundam). A «natureza» encarregou-se de mais uma partida...

Lamenta-se o sucedido, pois a população vai sofrer mais agruras ainda, sem energia eléctrica, sem água (sem abastecimentos?).

Mas lamento mais não poder ajudar.

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

A poesia e a Ilha de Moçambique

JPT, no seu ma-schamba, fez uma simpática e imerecida referência ao pendor poético deste blog, relativamente à Ilha de Moçambique.
É, como confessadamente se disse já, a «fraqueza» sentida deste incipiente aglutinador (o que aglutina- a-dor?) de palavras. E a assunção passional de um paradigma telúrico e existencial que alguns compreenderão. Porventura um devaneio pseudo-intelectual (ou pequeno burguês ?) para redenção de muitas mágoas e vivências, talvez não experimentadas ao limite ou no tempo certo.

Fez também um oportuno reparo para correcção do endereço actual do seu blog na lista de links . «Ordem» já cumprida, JPT.

A desculpa aos africanos

Pensava que a onda de «desculpas» como movimento de fim de milénio tivesse acabado.
Parece que não. Depois de o Papa ter pedido desculpas pela inquisição, depois de a Alemanha ter pedido desculpas pelo holocausto, julgava que estava tudo perdoado.
O arrependimento e o pedido de perdão, para ser genuíno, é o dos próprios ofensores, e não o "perdão" de terceiros, por muito pios e politicamente correctos que o sejam.
É uma atitude vazia, e, pior ainda, quando não se traduz em factos concludentes.
A escravatura e o colonialismo merecem ser compreendidos, debatidos, exorcizados, se necessário. Uma catarse é sempre positiva.
Mas este "perdão" pode ser a via mais fácil para a inconsequência.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

Pedir desculpa aos africanos

Mário Crespo lançou o mote, há muito latente, sobre a utilidade, a pertinência, a necessidade, a oportunidade e as consequências de um «pedido de desculpas» aos africanos.
Ver no chuinga.
Como as opiniões já se dividem, saudavelmente, prometo pensar no assunto.

Eduardo White - Ilha de Moçambique

Para mais um texto do Eduardo White sobre a Ilha de Moçambique, aqui fica novo link para o ma-schamba.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

A manutenção dos edifícios

É difícil a manutenção dos edifícios
na Ilha

pois neles recomeça
a gesta de todo o peso
da história

o cheiro dos madeiramentos
carcomidos
súbito o salitre
e a cal que se desprende
das paredes largas
e dos portais
e pousa triturado
no rosto-m´siro
das mulheres

É difícil conservar os edifícios
na Ilha
mais do que chamar
à razão
os homens
desprevenidos

sábado, 9 de fevereiro de 2008

Quando soubesses

Quando soubesses
o que significa

«Comprámos muita fome
e desesperámos com ela
porque o milho
se mergulhou»

então poderias
exibir a tua
ignara arrogância

com aqueles
que se acham baços,
apagados e reféns,
como, num dia nublado,
as estrelas

sábado, 2 de fevereiro de 2008

Ser sempre cidadão

Ser sempre cidadão
desde o raiar da madrugada
até altas horas da noite
sempre

indignar-se com a auto-proclamação
representativa
desses mercenários
do virtuosismo postiço
das modas fracturantes

ser cidadão
sempre

quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

Manual das mãos




Eu gostava de poder fugir a esta realidade tão fulminante. Dizem-me os amigos para enfrentar o problema, para agarrar o touro pelos cornos. Aliás, dizem-no sempre quando isto não é o que se passa com eles.

Não tenho dinheiro. Gastei-o a exilar-me em mim mesmo. No álcool, algumas vezes. A pagar rodadas dele aos amigos para não ficar sozinho. Tenho um pavor à solidão. É-me corrosiva e não sei viver com ela.

Penso, como consequência, em partir. Para onde? Não sei, se tivesse dinheiro era para uma ilha. A minha ilha. Moçambique. É bela. Antiga. Magistral.

Vejo-a:

Um pássaro revolve as asas por dentro do verde esbatido do mar. Traça a casa líquida que às estrelas, certamente, o seu piar vai dar. A história é-lhe longe, são formas entrecortadas, sobre a espuma amarelecida, dos navios cargueiros que beijam lentos o horizonte e movem silenciosos outras cargas.

A ilha suspende-se entre o vento e um negro reluzente cruza a praia com os olhos lavrando as areias. Não sei se reza, mas que pensa é mais que evidente. Testemunham os brancos cabelos e as mazelas no caqui dos desbotados calções. Cheira a marisco a brisa que inalam as narinas dentro desta paisagem e a cânfora, alguma, das memórias que ela desenha.

As redes que sobre o chão encontro estendidas, são cartas oceânicas que escreve o fundo do mar. Do texto salta a prata dos peixes, o verde amaciado das algas e uma estrela imóvel que explode, por dentro, a terra toda a girar. Claro que a areia as grava. Nessa forma de escrita mais milenar que a geringonça mágica de Gutemberg. Porque Deus descansa aqui, ao cair da noite. Silenciosamente medita por entre as lágrimas das tartarugas que junto a ele vêm desovar, ou de um negro macúa, estirado sobre o desgosto, a chorar um amor que, por teimosia, não quer morrer.

Vão longe, a navegar, os versos da miséria que do Luís de Camões a história quis esconder. Os ducados que nunca teve, nem para voltar nem para morrer, servem outros reinados e engordam a mesa dos que ainda julgam que poeta bom só miserável pode escrever. Lêem e estudam o que não dizem os poemas, sábios doutores esses universos etários, e nem com verdade podem entender, entretanto, o que eles explodem e doem e fazem crescer no coração esquecido dos seus autores.

Por isso a Ilha é calma. Tonta de tanta quietude e, talvez, será o que querem dizer as faces delicadas das suas negras, as mãos talhadas dos seus ourives.

Assim, o meu velho Camões, macúa zarolho só por ter visto sempre demais, terá, talvez, ali, amado o seu negro, seus humanos adamastores e com eles provado essa fatalidade incontornável de ser poeta sem ilha na ilha extensa dos que nela, até hoje, não o sabem ler.

Mas era para lá que eu queria partir.

Eduardo White

[Manual das Mãos - Excerto]

terça-feira, 29 de janeiro de 2008

Muipíti



Ilha, velha ilha, metal remanchado,
minha paixão adolescente,
que doloridas lembranças do tempo
em que, do alto do minarete,
Alah - o grande sacana! - sorria
aos tímidos versos bem comportados
que eu te fazia.

Eis-te, cartaz, convertida em puta histórica,
minha pachacha pseudo-oriental
a rescender a canela e açafrão,
maquilhada de espesso m’siro
e a mimar, pró turismo labrego,
trejeitos torpes de cortesã decrépita.

Meu Sitting Bull de carapinha e cofió,
têm-te de cócoras na sopa melancólica
de uma arena limosa e marinha,
gaivota tonta a adejar inutilmente
ao lume de água contra a amarra
que te cinje para sempre
ao bojo ventrudo do continente.

De teu, cultivam-te a vénia e a submissão
solícitas, trazidas nos pangaios
lá do distante Katiavar,
expondo-te apenas no que tens de vil,
razão talvez para que ao longe, de troça,
pisquem mortiças as luzes do Mossuril
ou sangre no meu peito esta mágoa incurável.

Mas retomo devagarinho as tuas ruas vagarosas,
caminhos sempre abertos para o mar,
brancos e amarelos filigranados
de tempo e sal, uma lentura
brâmane (ou muçulmana) durando no ar,
no sangue, ou no modo oblíquo como o sol
tomba sobre as coisas ferindo-as de mansinho
com a luz da eternidade.

Primeiro a ternura da mão que modulou
esta parede emprestando-lhe a curva hesitante
de uma carícia tosca mas porfiada
logo o cheiro a sândalo, o madeiramento
corroído da porta súbito entreaberta,
o refulgir da prata na sombra mais densa:
assim descubro subtil e cúmplice,
que a dura linha do teu perfil autêntico
te vai, aos poucos, fissurando a máscara.


[Rui Knopfli]

Muhipiti


É onde deponho todas as armas.
Uma palmeira
harmonizando-nos o sonho.

A sombra.
Onde eu mesmo estou.
Devagar e nu. Sobre
as ondas eternas.

Onde nunca fui e os anjos
brincam aos barcos com livros como mãos.
Onde comemos o acidulado último gomo
das retóricas inúteis.

É onde somos inúteis.
Puros objectos naturais.
Uma palmeira
de missangas com o sol.
Cantando.
Onde na noite a Ilha recolhe todos os istmos
e marulham as vozes.

A estatuária nas virilhas.
Golfando.
Maconde não petrificada.
É onde estou neste poema e nunca fui.
O teu nome que grito a rir do nome.
Do meu nome anulado. As vozes que te anunciam.
E me perco. E estou nu.
Devagar. Dentro do corpo.

Uma palmeira abrindo-se para o silêncio.
É onde sei a maxila que sangra. Onde os leopardos
naufragam. O tempo. O cigarro a metralhar
nos pulmões. A terra empapada. Golfando. Vermelha.
onde me confundo de ti. Um menino vergado
ao peso de ser homem. Uma palmeira em azul
humedecido sobre a fonte. A memória do infinito.

O repouso que a si mesmo interroga. Ouve.
A ronda e nenhum avião partiu.
É onde estamos.Onde os pássaros são pássaros e tu dormes.
E eu vagueio em soluços de sílabas. Onde
Fujo deste poema. Uma palmeira de fogo.

Na Ilha. Incendiando-nos o nome.

[Luís Carlos Patraquim]

sábado, 26 de janeiro de 2008

Hai ku

Táctil
Retráctil
Til
Tácito

quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

Toda a extensão da catástrofe

Na infância
nunca víamos
de dia
a Lua

Nesse tempo
omitiam-nos a temibilidade
da luz
de toda a luz
mais do que o temor das trevas

No passado não nos disseram
toda a extensão
da catástrofe
escondida

Não avistávamos,
nesse antanho
o horizonte
para lá da copa desse carvalho
que abraça o mundo
invertido dos embondeiros.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

Igual-desigual

Eu desconfiava:
todas as histórias em quadradinho são iguais.
Todos os filmes norte-americanos são iguais.
Todos os filmes de todos os países são iguais.
Todos os best-sellers são iguais.
Todos os campeonatos nacionais e internacionais de futebol
são iguais.
Todos os partidos políticos
são iguais.
Todas as mulheres que andam na moda
são iguais.
Todas as experiências de sexo
são iguais.
Todos os sonetos, gazéis, virelais, sextinas
e rondós são iguais
e todos, todos
os poemas em verso livre são enfadonhamente iguais.

Todas as guerras do mundo são iguais.
Todas as fomes são iguais.
Todos os amores, iguais iguais iguais.

Iguais todos os rompimentos.
A morte é igualíssima.
Todas as criações da natureza são iguais.
Todas as ações, cruéis, piedosas ou indiferentes,
são iguais.

Contudo, o homem não é igual a nenhum outro
homem, bicho ou coisa.

Ninguém é igual a ninguém.
Todo ser humano é um estranho
ímpar.

Carlos Drummond de Andrade.

sábado, 12 de janeiro de 2008

Ilha de Moçambique



Não é a pedra.
O que me fascina
é o que a pedra diz.
A voz cristalizada,
o segredo da rocha rumo ao pó.

E escutar a multidão
de empedernidos seres
que a meu pé se vão afeiçoando.
A pedra grávida
a pedra solteira,
a que canta, na solidão,
o destino de ser ilha.

O poeta quer escrever
a voz na pedra.

Mas a vida de suas mãos migra
e levanta voo na palavra.

Uns dizem: na pedra nasceu uma figueira.

Eu digo: na figueira nasceu uma pedra.


Mia Couto

segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

São nossas as mãos

São nossas as mãos
que tecem o futuro
e produzem rígidas
cofragens de gente

são nossas
também
as palavras desonestas
e prenhes de certeza

que apoucam
o génio dos homens