domingo, 27 de março de 2011

Breve memória familiar e comercial da África Oriental portuguesa (IV) - o irmão António dos Reis

Após a ida de João dos Reis, em 1923, um outro irmão decidiu ir para África: António. Foi integrado, ainda, nas «Missões laicas» (extintas pelo Estado Novo em Dezembro de 1926) que António se enquadrou nos desígnios ultramarinos republicanos, perto de Angoche. Quando terminou a sua participação nas «Missões laicas», António ficou integrado no chamado «Quadro administrativo». Os «administradores» coloniais eram uma espécie de concentrado de autoridade colonial, combinando competências administrativas "tout court" com competências jurisdicionais, em territórios com enormíssimas carências em termos de quadros e de recursos humanos, assim se rentabilizando as competências de autoridade e soberania nacional.



António dos Reis em 1925


António foi chamado para ser o "lugar tenente" do célebre administrador de Muecate (localidade natal dos dois filósofos portugueses, José e Fernando Gil), José de Castro («Likher»).


José de Castro detinha uma assinalável autoridade e reconhecimento das populações nativas, devido à forma como exercia as suas competências: docilidade para com as populações amistosas, extrema inflexibilidade para com os "rebeldes", sendo reconhecido por sempre honrar a palavra dada.


António serviu sob as ordens de "Likher", mantendo-se ao serviço da administração colonial durante toda a sua estadia em Moçambique, nunca tendo enveredado pelas actividades comerciais que os irmãos João e Domingos entretanto desenvolviam. Decidiu regressar à metrópole, para apoiar a irmã, Laura, que, na sequência da ida de todos os irmãos para África, se encontrava com o encargo da guarda dos dois filhos menores.


António dos Reis, após o seu regresso à metrópole.



População da Ilha de Moçambique


De Likher, conta-se que, entrando alguém de automóvel nos limites da sua circunscrição, e sem aviso específico, à sua chegada à sede da administração, encontraria pronta a recepção para o número de pessoas que viajassem no veículo, o que era possível através de sinais sonoros transmitidos pelos nativos durante o trajecto até à chegada. Deve esclarecer-se que as residências dos quadros administrativos, bem como as de alguns particulares, funcionavam como locais de hospedagem nessa distante África colonial portuguesa, onde, naturalmente, escasseavam as ofertas hoteleiras.

A população reconhecia também a Likher, poderes "mágicos" ou "sobre-humanos", como prever a falta de reacção de grandes felinos (leões e leopardos), o que, à sua passagem de "maxila" pelos matos, fazia acalmar os carregadores, prosseguindo a marcha, e correndo a sua fama pelos sertões.

Casa do administrador de Muecate.

quinta-feira, 10 de março de 2011

Breve memória familiar e comercial da África Oriental portuguesa (III) - João dos Reis, o "pioneiro"

Ilha de Moçambique nos anos 40 do séc. XX

Nampula terá começado a ser algo diferente de um lugarejo no meio do sertão africano em 1907, ano em que se decidiu empreender o estabelecimento de uma localidade fortificada dentro do «hinterland» da então África Oriental portuguesa, a fim de se dar cabal satisfação às exigências de ocupação dos territórios coloniais determinadas na Conferência de Berlim de 1885.

Na conjuntura do pós I.ª Guerra Mundial, em que as condições de vida da metrópole a isso incentivavam, e porque a região fora «pacificada» após as campanhas de Neutel de Abreu, que formalizara a Paz com o régulo Mucapera (seu "irmão de sangue"), as expectativas de negócios rentáveis e actividades com alguma estabilidade na administração colonial, atraíram muitos portugueses ao local que era o embrião da cidade de Nampula.

Confraternização colonial


Um desses portugueses foi João dos Reis, um de seis irmãos de uma aldeia da Beira Baixa, que estudara no Instituto Lusitano em Lisboa nos anos de 1916 e 1917 algo que hoje se interpretaria como diploma em Contabilidade e Comércio Internacional. Propôs-se a si mesmo só se aventurar em África depois de uma sólida formação técnica, profissional e humana, com planos de, mais do que enriquecer, contribuir para o enriquecimento humano e para o progresso de um território onde tudo era preciso fazer.

Parte para Moçambique em 1923, então África Oriental portuguesa a bordo de um dos vapores que faziam a ligação entre a metrópole e o ultramar, através do Canal do Suez, rota que utilizou por mais de uma vez.

Estabeleceu-se inicialmente na Ilha de Moçambique, então capital do Distrito de Nampula, onde foi Vereador da Câmara Municipal, fundador da Associação Comercial, perito do Tribunal Aduaneiro e Fiscal, vindo, depois, a ser membro da Comissão de Melhoramentos dos Caminhos de Ferro. Em 1929 foi encarregado da representação da Câmara Municipal de Moçambique em Porto Amélia (actual Pemba) na cerimónia de transferência da Companhia do Nyassa para a tutela directa do Estado.

Só alguns anos depois viria a transferir parte dos seus negócios para a nova localidade emergente no interior, Nampula, onde funda a firma João dos Reis & Irmão, com o irmão Domingos, que entretanto, fora chamado e se fixara em Angoche.

Cartão comercial da firma João dos Reis & Irmão

João dos Reis consegue, em conjunto com o seu irmão e sócio Domingos, expandir os seus negócios, como grossistas e retalhistas de diversas mercadorias, géneros, como agentes de seguros e, posteriormente, no que hoje se convencionaria designar por hotelaria.

segunda-feira, 7 de março de 2011

Para o registo da história judiciária penal da Província de Moçambique






Breve memória familiar e comercial da África Oriental portuguesa (II) - uma incursão na «(ex-)metrópole»

João dos Reis viria a estabelecer-se na cidade de Braga, onde abriu a Livraria Central, em frente ao que foi o Nosso Café.
João dos Reis

Nos anos 40 e 50 do século passado, Braga era uma cidade com certa projecção no panorama cultural nacional, marcada por características muito próprias, apesar de ter conhecido um processo de desenvolvimento urbanístico de alguma racionalidade e visão de futuro, com a gestão de Santos da Cunha (entre 1949 e 1961), o que lhe permitiu adquirir uma massa crítica notável, dada a instalação de diversos seminários e escolas secundárias (liceus), que congregaram a confluência de uma população jovem, instruída e cosmopolita.

Aspecto da Avenida Central (anos 40)

A livraria, papelaria, loja de brinquedos e brindes, tornou-se num estabelecimento de referência na urbe bracarense, agenciando, entre as demais actividades, as encomendas que, do território ultramarino de Moçambique, lhe faziam os seus irmãos Domingos e Luís dos Reis, que ali permaneciam nas suas actividades comerciais.

Aspecto da Livraria Central

O irmão António exercia como quadro administrativo em diversos postos do então distrito de Nampula (agora Província com o mesmo nome, que se situa entre os de Niassa e Cabo Delgado, deles separada pelo rio Lúrio, e o da Zambézia, fazendo fronteira o rio Ligonha).
João dos Reis continuou, ao longo do tempo, a fornecer mercadorias e novidades comerciais aos seus irmãos, que permaneciam com negócios em Moçambique, dos quais daremos notícia mais adiante.

domingo, 6 de março de 2011

Breve memória familiar e comercial da África Oriental portuguesa (I)

Nampula é uma cidade moçambicana relativamente recente. Começou a definir-se como tal nos inícios do séc. XX, mas a sua invejável malha urbanística só em meados desse século começou a ser concretizada. Diz-se ter sido cognominada como «cemitério dos brancos», mas esse é um epíteto que muitos outros lugares africanos mereciam na altura, dada a elevada taxa de mortalidade de europeus por malária.

Nampula só conheceu um processo de desenvolvimento acelerado alguns anos após a cidade da Ilha de Moçambique ter deixado de ser capital da colónia e de a centralidade do comércio e da agricultura se ter aprofundado no "hinterland" do Distrito de Nampula.

Foi o tempo do estabelecimento de muitas firmas comerciais e agrícolas, algumas delas já sedeadas na Ilha de Moçambique e em Angoche, designadamente comércios generalistas (cantinas), de víveres, vestuário elementar, e pouco mais. Estabeleceram-se alguns goeses e portugueses idos da metrópole, na procura da fortuna.

Um desses portugueses foi João dos Reis, um de seis irmãos de uma aldeia da Beira Baixa, que decidiu ir para a colónia em busca de um futuro mais promissor.

Ali se estabeleceu em diversos locais, a partir de 1924, desde a Ilha de Moçambique até Angoche, fixando-se por último em Nampula. Segundo se afirma, por memória oral, o primeiro edifício particular em alvenaria, da então pequena localidade, foi mandado construir por João dos Reis.

Pouco tempo depois, João dos Reis daria sociedade nos negócios de comércio geral ao seu irmão Domingos dos Reis, passando a mesma a denominar-se «João dos Reis & Irmão» (sociedade em nome colectivo).

Esse edifício ainda hoje se encontra em Nampula, ali se encontrando instalada a Ronil (sendo também, na parte habitacional, actual residência do Senhor Arnaldo Constantino, verdadeira lenda viva da cidade, pelo seu passado desportivo automobilístico, português que, após alguns anos em Portugal no período pós-descolonização, decidiu regressar a Nampula, ali se estabelecendo de novo).

O edifício com o aspecto original.

Após algum tempo, a sociedade João dos Reis & Irmão foi dissolvida e, por meados da década de 40 do século passado, João dos Reis regressaria à metrópole, onde se estabeleceu na cidade de Braga, onde abriu e passou a explorar a Livraria Central.


Domingos dos Reis permaneceria em Nampula, encarregando-se dos negócios dos outros irmãos.

O edifício da sociedade passou a ser arrendado a um comerciante de origem goesa, o Senhor Cassam Vissram, que o passou a explorar. Posteriormente, dada a cessação da actividade desta firma, o estabelecimento passou a ser explorado por Guilhermino Pereira Paulo, que o modernizou, designando-se «Pegue-e-pague», na altura o mais avançado supermercado da cidade (apesar da "patine" colonial). Guilhermino Paulo viria a adquirir o edifício em 1968 a João dos Reis, ali o explorando até depois da descolonização do território.

O edifício já com o estabelecimento da firma Cassam Vissram (após o seu arrendamento).

sábado, 5 de março de 2011

Breve memória familiar e comercial da África Oriental portuguesa (0) - Macuana, apontamento introdutório

A manutenção da expansão marítima comercial árabe, reformulada pela fixação portuguesa na Ilha de Moçambique (capital da Província até 1898, ano em que Lourenço Marques lhe sucedeu) e em Angoche, bem como a instalação de importantes serviços coloniais, com destaque para os comandos militares nos finais do séc. XIX, e para as actividades extractivas e cinegéticas (particularmente a obtenção de marfim), justificam o importante papel de toda a região da chamada «Macuana» como catalizador do processo de desenvolvimento histórico e sócio-económico do Norte do território.




A Ilha de Moçambique no início dos anos 50 do séc. XX.

De acordo com o Plano de Estrutura, a cidade de Nampula terá sido fundada em 1907. Foi após as campanhas de "pacificação" do interior do território, tendente a confirmar a ocupação imposta pelas determinações da Conferência de Berlim de 1885, levadas a cabo por Neutel de Abreu e outros chefes militares, nas quais se logrou a aliança com o célebre régulo Mucapera , que a povoação de Nampula foi criada (pela Portaria n.º 11600, de 22 de Agosto de 1920).

Mouzinho de Albuquerque e seu séquito.

Entre 21 de Julho de 1917 e Julho de 1921, a localidade funcionou como Comando Militar da Macuana, designação pela qual era então conhecida a região que corresponde sensivelmente à actual Província de Nampula.

Avenida prinicipal de Nampula (depois denominada Marechal Carmona e actualmente Paulo S. Kankhomba)

Em Julho de 1921 a povoação foi elevada a sede da Circunscrição dos actuais distritos de Nampula e Murrupula. Em 30 de Outubro de 1934, a povoação foi elevada à categoria de Vila, designada de Nampula. Um ano depois, em 1 de Janeiro de 1935 a vila ascendeu à categoria de capital dos distritos de Moçambique e Niassa, que incluia as actuais Províncias do Norte do País. A estrutura actual da Cidade começou a ganhar forma a partir dessa altura.

A 22 de Agosto de 1956, a Vila ascendeu à categoria de Cidade. A importância política, económica e estratégica da povoação de Nampula começou a evidenciar-se na década de 30 do século passado, como resultado do desenvolvimento da povoação criada a partir do Posto Militar instalado em 1907, e da transferência da capital do então distrito de Moçambique, da Ilha de Moçambique para Nampula, em 1934.

Embora originariamente Nampula tenha sido um importante centro militar, gradualmente desenvolveu-se como centro administrativo, agrícola e comercial para toda a região Norte de Moçambique.

Aspecto de Nampula, escadaria em frente ao Palácio das Repartições (antigo Parque Salazar, entretanto reformulado).