quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Coração em África III

De coração em África em noites de vigília escutando o olho mágico do rádio
e a rouquidão sentimento das inarmonias de Armstrong.
De coração em África em todas as poesias gregárias ou escolares que zombam
e zumbem sob as folhas de couve da indiferença
mas que têm a beleza das rodas de criança com papagaios garridos
e jogos de galinha branca vai até França
que cantam as volutas dos seios e das coxas das negras e mulatas de olhos rubros
como carvões verdes acesos.
De coração em África trilho estas ruas nevoentas da cidade
de África no coração e um ritmo de be bop be nos lábios
enquanto à minha volta se sussurra olha o preto (que bom)
olha um negro (óptimo) olha um mulato (tanto faz) olha um moreno (ridículo)
e procuro no horizonte cerrado da beira-mar
cheiro de maresias distantes de areais distantes
com silhuetas de coqueiros conversando baixinho à brisa da tarde
De coração em África na mão deste Negro enrodilhado e sujo de beira-cais
vendendo cautelas com a incisão do caminho da cubata
perdida na carapinha alvinitente;
de coração em África com as mãos e os pés trambolhos
disformes e deformados como os quadros de Portinari
dos estivadores do mar
e dos meninos ranhosos viciados pelas olheiras fundas das fomes de Pomar
vou cogitando na pretidão do mundo que ultrapassa da própria cor da pele
dos homens brancos amarelos negros ou às riscas
e o coração entristece à beira-mar da Europa
da Europa por mim trilhada de coração em África;
e chora fino na arritmia de um relógio cuja corda vai estalar
soluça a indignação que fez os homens escravos de homens
mulheres escravas de homens crianças escravas de homens
negros escravos dos homens
amarelos e brancos e brancos e amarelos e negros escravos sempre dos homens
e também aqueles de que ninguém fala e eu Negro não esqueço
como os pueblos e os xavantes os esquimós os aïnos eu sei lá
que são tantos e todos escravos entre si.

[Francisco José Tenreiro]

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