domingo, 25 de setembro de 2011

Breve memória familiar e comercial da África Oriental portuguesa (XVI) – O quotidiano de uma família nos Anos 60 em Moçambique (parte 1.ª)

Não era, apesar de tudo, fácil a adaptação a África nos anos 50 do século passado, para um europeu que nunca ali estivera, para mais uma jovem oriunda de uma cidade de província em Portugal. Maria Vitória deparou-se com dificuldades diversas, desde o clima, passando pela gestão da nova casa, até algumas preocupações com o desempenho de tarefas no auxílio do marido, José dos Reis Bravo, no âmbito comercial.Maria Ricardo, Maria Vitória e José Ricardo.

Nesse período de instalação, foram muito apoiados pelo já atrás mencionado casal composto por José e Maria Ricardo, pessoas com larga experiência da colónia e que, praticamente, por não terem filhos, quiseram tornar-se figuras tutelares de José Bravo e Maria Vitória. D. Maria Ricardo considerava-se mesmo a «mãe africana» de Maria Vitória. O senhor José Ricardo era uma individualidade invulgarmente avançada para a época. Era um casal que explorava uma machamba, nos arredores de Nampula (perto do Bairro da Namutequeliua). Para além de ser fervoroso vegetariano, defendendo já uma peculiar relação de harmonia entre o Homem e o meio envolvente (com conceitos algo datados, mas cuja essência era eminentemente ecológica), empregava nativos e com eles estabelecia um relacionamento bem diferenciado do que era comum nas demais explorações, advogando a escassa utilização de fertilizantes químicos no cultivo dos produtos agrícolas. Baptizado de António José, na catedral de Nampula, onde se reconhece, além dos pais, o casal Ricardo.

O primeiro filho do casal José e Maria Vitória, António José, nasceu praticamente um ano após o seu casamento, no dia 26 de Abril de 1958 (dia de aniversário de José dos Reis Bravo). Maria Vitória teve o seu primeiro filho na Casa de Saúde do Marrere, para onde foi transportada de táxi, pelas 06h00. José dos Reis Bravo só ao final da tarde voltou à Casa de Saúde, de lambreta (seu meio de transporte, na época), fazendo cerca de 10 Kms em picada. Porém, tudo decorreu com normalidade.
Apesar de os seus padrinhos serem a sua avó Laura e o tio-avô António, o casal Ricardo quis figurar como "padrinhos por procuração” (dado aqueles se encontrarem na metrópole).

Maria Vitória e António José, no estabelecimento Casa Reis.

António José, com tambor, próximo do Volvo do senhor Tito Martins, proprietário da ourivesaria ao lado da Casa Reis.



Passados dois anos, em 9 de Agosto de 1960, nasce o segundo filho do casal, Jorge Manuel, também na Casa de Saúde do Marrere, da qual – curiosamente, como se narrará adiante –, José dos Reis Bravo veio a ser Provedor, anos mais tarde. Também por ocasião do nascimento desse filho, o casal Ricardo quis acompanhar de perto o processo, estando presente no baptizado, sendo, no entanto, os padrinhos os avós maternos do novo bebé, Irene e Manuel.

António e Jorge, comprando amendoim ("torrado") a um vendedor ambulante.


O início da luta armada (Guerra de Libertação/Guerra Colonial) em Moçambique fez o casal José e Maria Vitória ponderar um regresso à metrópole, temporário ou definitivo, de forma a não expor os filhos a riscos desnecessários. No entanto, a evolução do processo bélico, com o confinamento das zonas de combate, e o facto de Nampula ser o Quartel-General das Forças Armadas na Província, fez com que na região nunca tivesse havido confrontos que inspirassem preocupações excessivas.


José dos Reis Bravo e o filho Jorge

O casal permanece em Moçambique com os filhos, e a vida prossegue com a normalidade do quotidiano de um auge de sistema colonial, que experimentaram. Para o melhor e para o pior.



José dos Reis Bravo e os filhos, frente ao estabelecimento Casa Reis

O território conhecia, então, um processo de desenvolvimento urbano, agrícola, industrial, viário e de transportes, que se desenrolava a um ritmo assinalável. Nampula torna-se um centro urbano progressivo, com equipamentos que permitiam uma qualidade de vida de excepção, evidentemente não extensivo a todos os cidadãos, nomeadamente os nativos africanos, que só marginalmente beneficiaram desse desenvolvimento.


Aspecto parcial de Nampula, em inícios dos anos 60 do séc. passado (foto ext. do Livro Recordações de Moçambique, Carlos Alberto Vieira, Aletheia Ed.).

Em 1964, o regime colonial orgulhava-se de apresentar o primeiro (e, pensa-se que único) Presidente da Câmara Municipal negro, o depois deputado Pedro Baessa (entre 1969 e 1973), de pai cabo-verdiano (Pedro Baessa, sénior), intérprete na batalha de Marracuene, nas campanhas de pacificação de Caldas Xavier, e de mãe moçambicana (e cuja filha, Lizete Baessa, «a Tia Preta, de Chelas» morreu em Lisboa, em Julho de 2011). Esta é, também uma homenagem a esse homem singular, que viveu servindo, à sua maneira, o seu povo, sem olhar a etnias, credos ou posses.




Pedro Baessa, Presidente da Câmara Municipal de Nampula e deputado à Assembleia Nacional (entre 1969 e 1973).

Sem comentários: