terça-feira, 18 de outubro de 2011

Breve memória familiar e comercial da África Oriental portuguesa (XVIII) – Uma infância africana (2.ª parte)

Também há que recordar alguns dos empregados mais relevantes da sociedade Domingos dos Reis & Sobrinho, Ld.ª.

O decano empregado da Casa Reis era Juma Martade, que fora admitido ainda antes do início da sociedade, por Domingos dos Reis, ancião respeitado e respeitável e figura influente no meio laboral das diversas firmas comerciais do centro da cidade, cujos empregados o consultavam quando havia conflitos e crispações com o patronato. Na firma Domingos dos Reis & Sobrinho já tinha um estatuto praticamente honorífico, apresentando-se no local de trabalho e supervisionando algumas tarefas de outros empregados.


É justo lembrar, ainda, as empregadas Dália, Mabília e Ivone Rente, que trabalharam durante algum tempo na firma. Juma Martade


Eugénio José Moreno foi um empregado que rapidamente se destacou e mereceu a confiança de José dos Reis Bravo, que observou nele dotes de inteligência, disciplina, ambição e capacidade de organização. Propôs-lhe que tirasse o Curso Nocturno de Contabilidade e Técnica Comercial na Escola Industrial e Comercial Neutel de Abreu, o que fez com bom aproveitamento. Sempre foi um empregado protegido e da maior confiança. É actualmente quadro de destaque numa empresa em Nacala-Porto. Eugénio José Moreno

Para além do sistema de ensino formal e institucional, Jorge aprendeu muito com o que hoje pode, com propriedade, chamar a “trindade de sabedoria africana», composta pelos seus três “mestres macuas”, Jumah Martade (o mais antigo e fiel empregado da Casa Reis), Roque (capataz do armazém da firma Zuid) e Ismaíl Sabur (mainato e cozinheiro da família). Os dois primeiros, mais velhos (“cocuanas”), e o terceiro eram repositórios de sabedoria oral, que Jorge gostava de escutar depois do almoço, na tranquila hora da «sesta» e na pausa do trabalho deles.


Aspecto parcial de Nampula



Todos eles eram muçulmanos, sendo Ismaíl, inclusivamente, uma espécie de auxiliar do imã da mesquita do seu bairro. Talvez fosse esse exotismo que atraía Jorge, ao “beber” as palavras das histórias daqueles dois anciãos e de Ismaíl, os quais não mostravam especial contemplação com as suas asneiras e pequenas traquinices infantis.

Censuravam-no e exortavam-no a respeitar “os madalas” (os velhos) porque isso era um valor sagrado para a sua cultura. As suas conversas não eram só sobre religião, versando muitos outros assuntos, como os costumes e tradições nativos, aspectos da história oral africana, a fauna e flora da região, a caligrafia árabe (por eles dominada, nos seus estudos religiosos), os acontecimentos da Província, a actualidade da guerra colonial, a situação social e laboral dos negros nativos.

Formavam uma roda, geralmente no corredor de acesso ao armazém da Zuid, em que fumavam cigarros Havana (de que Jumah se abastecia, por ter a prerrogativa de não pagar o tabaco na Casa Reis) e aos quais se juntavam outros trabalhadores de empresas vizinhas na hora da pausa de trabalho. Apesar de falarem em macua, tinham a gentileza de traduzir para português o que Jorge não compreendia. Esses ensinamentos e aprendizagens contribuíram inconscientemente, mas de forma decisiva, para a formação da personalidade de um rapazito curioso. Os irmãos na piscina de maré da Ilha de Moçambique


José e Maria Vitória sempre fizeram questão de inculcar nos filhos o respeito por todas as pessoas, independentemente da raça, religião, profissão ou estatuto sócio-económico, o que era apanágio do próprio relacionamento comercial da Casa Reis, que não estabelecia qualquer tipo de descriminação entre os seus clientes. Acima de tudo, vigorava uma lógica de respeito geral pela condição de todas as pessoas, incentivando o convívio com colegas de todas as raças e condições sociais e económicas, o que se traduzia na prática quotidiana da vida escolar, desportiva e social dos irmãos António e Jorge.

José dos Reis Bravo, com cliente, no estabelecimento


José dos Reis Bravo, com dois filhos de trabalhadores da machamba dos amigos José e Maria Ricardo

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