sexta-feira, 22 de abril de 2011

Herr Grosch




Actual estado da casa de Herr Grosch




Ainda hoje, a personalidade de Herr Grosch permanece, para mim, um mistério.
Dele se dizia que tinha sido desertor da marinha do III Reich, juntamente com outros alemães que se estabeleceram na baía da Condúcia, mas menos conhecidos. Outros afirmavam que era espião da RDA. Outros, ainda, que se tratava de um criminoso de guerra «exilado» num recôndito (mas paradisíaco) lugarejo da África Oriental Portuguesa.
Nunca esclareci a verdade da origem de Herr Grosch.
Grosch há muito tempo que vivia nas Chocas, a praia por excelência do Distrito de Nampula. Ali se dedicava à colecção de conchas raras, que exportava e dizia ser a sua fonte de rendimentos (é verdade que várias vezes o vi preparar encomendas para enviar para o estrangeiro e chegar cartas a encomendar-lhe colecções).
Também se falava nas finalidades ocultas do seu rádio-transmissor, equipamento de utilidade óbvia num tempo em que o isolamento era real.
O que mais nos fascinava, adolescentes (mwanas, miúdos brancos) que passávamos as férias nas Chocas, era a sua fleuma, a sua vasta cultura e actualização informativa, a assimilação de muitos costumes indígenas, pois vivia numa casa de colmo, com uma excelente biblioteca, onde, por detrás dos livros, um dia, deparei com a sua jibóia de estimação, entorpecida, depois de engolir uma galinha que Grosch deitava escrupulosamente para a cisterna onde a guardava.


A sua pose era imponente e respeitável, alto e seco, rosto tisnado e muito liso, de uma magreza saudável, acusando algum declínio da idade, mas sempre seguro de si, fumando bastante.


Aceitava convites de alguns dos nossos pais, para uma refeição em casa ou no bar.


Tinha um relacionamento regular com alguns alemães das plantações de sisal do Monapo.
Grosch gostava de conviver com a miudagem que o rodeava e que com ele queria aprender.
Nós gostávamos de o ver partir, mar adentro, remando no equilíbrio precário da sua prancha rasa, quantas vezes em direcção à Ilha dos Sete Paus, ou mesmo para a Ilha das Cobras e até para Matibane, no outro lado da Condúcia. Porque, sabíamos, ele regressaria sempre, tal era o domínio do mar.


E ele regressa sempre, povoando uma parte nebulosa da minha infância em que o fascínio se misturou com o receio, a admiração com a dúvida.
Grosch está lá guardado. Personagem de ficção num sítio e num tempo improváveis. Mas reais. Para sempre.

terça-feira, 19 de abril de 2011

Breve memória familiar e comercial da África Oriental portuguesa (V) - o irmão Domingos dos Reis

Domingos dos Reis em Angoche.


Domingos dos Reis viria para a Província de Moçambique em 1927, começando a participar nas actividades comerciais do irmão João, já estabelecido na Ilha de Moçambique desde 1923.
Os primeiros anos são passados na cidade da Ilha de Moçambique, após o que, em Fevereiro de 1931, formalizam a sociedade João dos Reis & Irmão [Domingos], sociedade em nome colectivo, da qual já demos conta.
Rosto da escritura de constituição da sociedade (em nome colectivo) João dos Reis & irmão.

Esta sociedade passa a operar predominantemente na Ilha de Moçambique, mas descentraliza a sua actividade de comércio geral para Angoche e para a localidade emergente no interior da Macuana, Nampula (Whampula, em língua macua).
Eram os tempos da «pós-pacificação» pelo capitão-mor Neutel de Abreu, o qual, entretanto, fora nomeada administrador do Mojincual e foi amigo dos irmãos João, António e Domingos dos Reis.
Os tempos que se seguiram foram de consolidação das posições comerciais, em que foi preciso alguma resistência à forte e persistente concorrência das casas comerciais dos cidadãos industânicos estabelecidos na Ilha de Moçambique e no continente próximo, entre os quais Mumad Banji, Juma Nangi, Jamal Kará, Damodar (família com mais de 200 anos de permanência na Ilha), Gordandás Valabdás, Bagamal e Nanikran.
Havia, naturalmente, também a concorrência de firmas comerciais europeias como a Zuid AfriKaans Handelshuis, a Boror, a Philippi, que remontavam já ao tempo da Capitania-Mor das Terras Firmes, e a João Ferreira dos Santos, que entretanto, empreendera a exploração do coqueiral de Saua-Saua.
Esta época conheceu grande dinamismo comercial e agrícola, após o decaimento da actividade da caça grossa, com as inerentes e devastadoras exportações de marfim. Havia uma actividade intensa no porto da Ilha de Moçambique, que era considerado o terceiro porto da Província (antes da construção do porto de Nacala). Havia importação de equipamentos industriais, alfaias, produtos de utilidades e de víveres por grosso, exportando-se algodão, caju, copra e sisal.



Aspectos da faina portuária da Ilha de Moçambique, nos anos 40 (do séc. XX).


Tornava-se necessário diversificar e deslocalizar a actividade comercial. Por isso, depois da formalização da sociedade João dos Reis & Irmão, Domingos dos Reis instalou-se em Angoche, onde abriu estabelecimento de comércio geral por atacado e de venda de utilidades, ali permanecendo até 1940.

Domingos dos Reis



Por essa altura, regressou à Ilha de Moçambique, mas por pouco tempo; o desenvolvimento induzido pela transferência da capital do Distrito para Nampula, em 1933, incentivou os irmãos sócios a ali se fixarem com mais estabilidade.