sábado, 30 de agosto de 2008

Babel

Babel é já o Mundo
Porquê, então, o caos?

Babel coloniza-nos
pela intimidade dos povos,
sem precisão de salvo-conduto.
Falamos japonês nos Champs Élysées
Beckett é lido nas montanhas de Kandahar
comunica-se castelhano em Tiannamen
e o céu protege-nos em Tânger
é provável escutar suaíli no calçadão do Rio
ou rezar em yiddish no Kilimanjaro
decerto falaremos português no Ceilão.

O Mundo é já Babel
Porquê, então, o caos?

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Coração em África IV

Chora coração meu estala coração meu enternece-te meu coração
de uma só vez (oh orgão feminino do homem)
de uma só vez para que possa pensar contigo em África
na esperança de que para o ano vem a monção torrencial
que alagará os campos ressequidos pela amargura da metralha
e adubados pela cal dos ossos de Taszlitzki
na esperança de que o Sol há-de prenhar as espigas de trigo
para os meninos viciados
e levará milho às cabanas destelhadas do último rincão da Terra
distribuirá o pão o vinho e o azeite pelos aliseos;
na esperança de que as entranhas hiantes de um menino antípoda
haja sempre uma túlipa de leite ou uma vaca de queijo que lhe mitigue a sede da existência. Deixa-me coração louco
deixa-me acreditar no grito de esperança lançado pela paleta viva de Rivera
e pelos oceanos de ciclones frescos das odes de Neruda;
deixa-me acreditar que do desespero másculo de Picasso sairão pombas
que como nuvens voarão os céus do mundo de coração em África.

[Francisco José Tenreiro]

Coração em África III

De coração em África em noites de vigília escutando o olho mágico do rádio
e a rouquidão sentimento das inarmonias de Armstrong.
De coração em África em todas as poesias gregárias ou escolares que zombam
e zumbem sob as folhas de couve da indiferença
mas que têm a beleza das rodas de criança com papagaios garridos
e jogos de galinha branca vai até França
que cantam as volutas dos seios e das coxas das negras e mulatas de olhos rubros
como carvões verdes acesos.
De coração em África trilho estas ruas nevoentas da cidade
de África no coração e um ritmo de be bop be nos lábios
enquanto à minha volta se sussurra olha o preto (que bom)
olha um negro (óptimo) olha um mulato (tanto faz) olha um moreno (ridículo)
e procuro no horizonte cerrado da beira-mar
cheiro de maresias distantes de areais distantes
com silhuetas de coqueiros conversando baixinho à brisa da tarde
De coração em África na mão deste Negro enrodilhado e sujo de beira-cais
vendendo cautelas com a incisão do caminho da cubata
perdida na carapinha alvinitente;
de coração em África com as mãos e os pés trambolhos
disformes e deformados como os quadros de Portinari
dos estivadores do mar
e dos meninos ranhosos viciados pelas olheiras fundas das fomes de Pomar
vou cogitando na pretidão do mundo que ultrapassa da própria cor da pele
dos homens brancos amarelos negros ou às riscas
e o coração entristece à beira-mar da Europa
da Europa por mim trilhada de coração em África;
e chora fino na arritmia de um relógio cuja corda vai estalar
soluça a indignação que fez os homens escravos de homens
mulheres escravas de homens crianças escravas de homens
negros escravos dos homens
amarelos e brancos e brancos e amarelos e negros escravos sempre dos homens
e também aqueles de que ninguém fala e eu Negro não esqueço
como os pueblos e os xavantes os esquimós os aïnos eu sei lá
que são tantos e todos escravos entre si.

[Francisco José Tenreiro]

Coração em África II

Em três linhas (sentidas saudades de África) -
Mac Gee cidadão da América e da democracia
Mac Gee cidadão Negro e da negritude
Mac Gee cidadão Negro da América e do Mundo Negro
Mac Gee fulminado pelo coração endurecido feito cadeira eléctrica
(do cadáver queimado de Mac Gee do seu coração em África e sempre vivo
floriram flores vermelhas flores vermelhas flores vermelhas
e também azúis e também verdes e também amarelas
na gama polícroma da verdade do Negro
da inocência de Mac Gee) -;
três linhas no jornal como um falso cartão de pêsames.

Caminhos trilhados na Europa
de coração em África.
De coração em África com o grito seiva bruta dos poemas de Guillén
de coração em África com a impetuosidade viril de I too am América
de coração em África com as árvores renascidas em todas estações
nos belos poemas de Diop
de coração em África nos rios antigos que o Negro conheceu
e no mistério do Chaka-Senghor
de coração em África contigo amigo Joaquim quando em versos incendiários
cantaste a África distante do Congo da minha saudade do
Congo de coração em África.
De coração em África ao meio dia do dia de coração em África
com o Sol sentado nas delícias do zénite
reduzindo a pontos as sombra dos Negros
amodorrando no próprio calor da reverberação
os mosquitos
da nocturna picadela.

[Francisco José Tenreiro]

Coração em África I

Caminhos trilhados na Europa
de coração em África.
Saudades longas de palmeiras vermelhas verdes amarelas
tons fortes da paleta cubista
que o Sol sensual pintou na paisagem;
saudade sentida de coração em África
ao atravessar estes campos do trigo sem bocas
das ruas sem alegria com casas caiadas
pela metralha míope da Europa e da América
da Europa trilhada por mim Negro de coração em África.
De coração em África na simples leitura dominical
dos periódicos cantando na voz ainda escaldante da tinta
e com as dedadas de miséria dos ardinas das cities boulevards e baixas da Europa
trilhada por mim Negro e por ti ardina
cantando dizia eu em sua voz de letras as melancolias
do orçamento que não equilibra
do Benfica venceu o Sporting ou não
ou antes ou talvez seja que desta vez vai haver guerra
para que nasçam flores roxas de paz
com fitas de veludo e caixões de pinho;
oh as longas páginas do jornal do mundo
são folhas enegrecidas de macabro blue
com mourarias de facas e guernicas de toureiros.

[Francisco José Tenreiro]