quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

Manual das mãos




Eu gostava de poder fugir a esta realidade tão fulminante. Dizem-me os amigos para enfrentar o problema, para agarrar o touro pelos cornos. Aliás, dizem-no sempre quando isto não é o que se passa com eles.

Não tenho dinheiro. Gastei-o a exilar-me em mim mesmo. No álcool, algumas vezes. A pagar rodadas dele aos amigos para não ficar sozinho. Tenho um pavor à solidão. É-me corrosiva e não sei viver com ela.

Penso, como consequência, em partir. Para onde? Não sei, se tivesse dinheiro era para uma ilha. A minha ilha. Moçambique. É bela. Antiga. Magistral.

Vejo-a:

Um pássaro revolve as asas por dentro do verde esbatido do mar. Traça a casa líquida que às estrelas, certamente, o seu piar vai dar. A história é-lhe longe, são formas entrecortadas, sobre a espuma amarelecida, dos navios cargueiros que beijam lentos o horizonte e movem silenciosos outras cargas.

A ilha suspende-se entre o vento e um negro reluzente cruza a praia com os olhos lavrando as areias. Não sei se reza, mas que pensa é mais que evidente. Testemunham os brancos cabelos e as mazelas no caqui dos desbotados calções. Cheira a marisco a brisa que inalam as narinas dentro desta paisagem e a cânfora, alguma, das memórias que ela desenha.

As redes que sobre o chão encontro estendidas, são cartas oceânicas que escreve o fundo do mar. Do texto salta a prata dos peixes, o verde amaciado das algas e uma estrela imóvel que explode, por dentro, a terra toda a girar. Claro que a areia as grava. Nessa forma de escrita mais milenar que a geringonça mágica de Gutemberg. Porque Deus descansa aqui, ao cair da noite. Silenciosamente medita por entre as lágrimas das tartarugas que junto a ele vêm desovar, ou de um negro macúa, estirado sobre o desgosto, a chorar um amor que, por teimosia, não quer morrer.

Vão longe, a navegar, os versos da miséria que do Luís de Camões a história quis esconder. Os ducados que nunca teve, nem para voltar nem para morrer, servem outros reinados e engordam a mesa dos que ainda julgam que poeta bom só miserável pode escrever. Lêem e estudam o que não dizem os poemas, sábios doutores esses universos etários, e nem com verdade podem entender, entretanto, o que eles explodem e doem e fazem crescer no coração esquecido dos seus autores.

Por isso a Ilha é calma. Tonta de tanta quietude e, talvez, será o que querem dizer as faces delicadas das suas negras, as mãos talhadas dos seus ourives.

Assim, o meu velho Camões, macúa zarolho só por ter visto sempre demais, terá, talvez, ali, amado o seu negro, seus humanos adamastores e com eles provado essa fatalidade incontornável de ser poeta sem ilha na ilha extensa dos que nela, até hoje, não o sabem ler.

Mas era para lá que eu queria partir.

Eduardo White

[Manual das Mãos - Excerto]

terça-feira, 29 de janeiro de 2008

Muipíti



Ilha, velha ilha, metal remanchado,
minha paixão adolescente,
que doloridas lembranças do tempo
em que, do alto do minarete,
Alah - o grande sacana! - sorria
aos tímidos versos bem comportados
que eu te fazia.

Eis-te, cartaz, convertida em puta histórica,
minha pachacha pseudo-oriental
a rescender a canela e açafrão,
maquilhada de espesso m’siro
e a mimar, pró turismo labrego,
trejeitos torpes de cortesã decrépita.

Meu Sitting Bull de carapinha e cofió,
têm-te de cócoras na sopa melancólica
de uma arena limosa e marinha,
gaivota tonta a adejar inutilmente
ao lume de água contra a amarra
que te cinje para sempre
ao bojo ventrudo do continente.

De teu, cultivam-te a vénia e a submissão
solícitas, trazidas nos pangaios
lá do distante Katiavar,
expondo-te apenas no que tens de vil,
razão talvez para que ao longe, de troça,
pisquem mortiças as luzes do Mossuril
ou sangre no meu peito esta mágoa incurável.

Mas retomo devagarinho as tuas ruas vagarosas,
caminhos sempre abertos para o mar,
brancos e amarelos filigranados
de tempo e sal, uma lentura
brâmane (ou muçulmana) durando no ar,
no sangue, ou no modo oblíquo como o sol
tomba sobre as coisas ferindo-as de mansinho
com a luz da eternidade.

Primeiro a ternura da mão que modulou
esta parede emprestando-lhe a curva hesitante
de uma carícia tosca mas porfiada
logo o cheiro a sândalo, o madeiramento
corroído da porta súbito entreaberta,
o refulgir da prata na sombra mais densa:
assim descubro subtil e cúmplice,
que a dura linha do teu perfil autêntico
te vai, aos poucos, fissurando a máscara.


[Rui Knopfli]

Muhipiti


É onde deponho todas as armas.
Uma palmeira
harmonizando-nos o sonho.

A sombra.
Onde eu mesmo estou.
Devagar e nu. Sobre
as ondas eternas.

Onde nunca fui e os anjos
brincam aos barcos com livros como mãos.
Onde comemos o acidulado último gomo
das retóricas inúteis.

É onde somos inúteis.
Puros objectos naturais.
Uma palmeira
de missangas com o sol.
Cantando.
Onde na noite a Ilha recolhe todos os istmos
e marulham as vozes.

A estatuária nas virilhas.
Golfando.
Maconde não petrificada.
É onde estou neste poema e nunca fui.
O teu nome que grito a rir do nome.
Do meu nome anulado. As vozes que te anunciam.
E me perco. E estou nu.
Devagar. Dentro do corpo.

Uma palmeira abrindo-se para o silêncio.
É onde sei a maxila que sangra. Onde os leopardos
naufragam. O tempo. O cigarro a metralhar
nos pulmões. A terra empapada. Golfando. Vermelha.
onde me confundo de ti. Um menino vergado
ao peso de ser homem. Uma palmeira em azul
humedecido sobre a fonte. A memória do infinito.

O repouso que a si mesmo interroga. Ouve.
A ronda e nenhum avião partiu.
É onde estamos.Onde os pássaros são pássaros e tu dormes.
E eu vagueio em soluços de sílabas. Onde
Fujo deste poema. Uma palmeira de fogo.

Na Ilha. Incendiando-nos o nome.

[Luís Carlos Patraquim]

sábado, 26 de janeiro de 2008

Hai ku

Táctil
Retráctil
Til
Tácito

quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

Toda a extensão da catástrofe

Na infância
nunca víamos
de dia
a Lua

Nesse tempo
omitiam-nos a temibilidade
da luz
de toda a luz
mais do que o temor das trevas

No passado não nos disseram
toda a extensão
da catástrofe
escondida

Não avistávamos,
nesse antanho
o horizonte
para lá da copa desse carvalho
que abraça o mundo
invertido dos embondeiros.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

Igual-desigual

Eu desconfiava:
todas as histórias em quadradinho são iguais.
Todos os filmes norte-americanos são iguais.
Todos os filmes de todos os países são iguais.
Todos os best-sellers são iguais.
Todos os campeonatos nacionais e internacionais de futebol
são iguais.
Todos os partidos políticos
são iguais.
Todas as mulheres que andam na moda
são iguais.
Todas as experiências de sexo
são iguais.
Todos os sonetos, gazéis, virelais, sextinas
e rondós são iguais
e todos, todos
os poemas em verso livre são enfadonhamente iguais.

Todas as guerras do mundo são iguais.
Todas as fomes são iguais.
Todos os amores, iguais iguais iguais.

Iguais todos os rompimentos.
A morte é igualíssima.
Todas as criações da natureza são iguais.
Todas as ações, cruéis, piedosas ou indiferentes,
são iguais.

Contudo, o homem não é igual a nenhum outro
homem, bicho ou coisa.

Ninguém é igual a ninguém.
Todo ser humano é um estranho
ímpar.

Carlos Drummond de Andrade.

sábado, 12 de janeiro de 2008

Ilha de Moçambique



Não é a pedra.
O que me fascina
é o que a pedra diz.
A voz cristalizada,
o segredo da rocha rumo ao pó.

E escutar a multidão
de empedernidos seres
que a meu pé se vão afeiçoando.
A pedra grávida
a pedra solteira,
a que canta, na solidão,
o destino de ser ilha.

O poeta quer escrever
a voz na pedra.

Mas a vida de suas mãos migra
e levanta voo na palavra.

Uns dizem: na pedra nasceu uma figueira.

Eu digo: na figueira nasceu uma pedra.


Mia Couto

segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

São nossas as mãos

São nossas as mãos
que tecem o futuro
e produzem rígidas
cofragens de gente

são nossas
também
as palavras desonestas
e prenhes de certeza

que apoucam
o génio dos homens